Fundamentos do Xadrez, por Capablanca

Após cem anos de seu lançamento em língua inglesa, a obra magistral do grande campeão mundial de xadrez José Raúl Capablanca, “Chess Fundamentals”, recebe sua primeira tradução em língua portuguesa. Obra inteiramente revisada, enriquecida com notas históricas, novos diagramas e em notação algébrica.

É com muita alegria que eu, Rewbenio Frota, e meu filho Paulo Tashiro Frota, finalmente lançamos a primeira tradução em língua portuguesa do clássico Fundamentos do Xadrez, do grande José Raúl Capablanca.

Rewbenio e Paulo Frota, tradutores de obra de xadrez.
Tradutores da obra (Paulo Tashiro Frota e Rewbenio Frota, filho e pai, respectivamente)

A ideia de traduzir este clássico surgiu há muitos anos, em 1998 quando eu era ainda um estudante, como uma maneira de estudar de ponta a ponta a versão em espanhol do livro, com adicional motivação de finalmente trazer seu conteúdo para a língua portuguesa. Muitas dificuldades práticas se impuseram, e acabei “engavetando” o projeto, que ficou como um arquivo de word em algum disquete, depois CD e finalmente HD de backup.

Com a entrada do livro em domínio público, há quase 10 anos, achei que logo apareceria uma versão profissional em português, pois havia o incentivo adicional para tradutores e editores de poder comercializar a obra do grande campeão cubano. Mas isso não aconteceu.

Decidi retomar o trabalho, com a ajuda do meu filho Paulo Tashiro Frota e das facilidades tecnológicas que permitem, por exemplo, editar diagramas, conferir termos de tradução, etc, de maneira muito mais rápida que em 1999.

Como o original do livro saiu em inglês em 1921, antes mesmo da versão em espanhol (língua materna de Capablanca), passamos a utilizar como base para a tradução o arquivo disponível no site do The Project Gutenberg, mantendo a versão em espanhol (muito difundida no Brasil) apenas como referência.

O lançamento em 2021 se mostra alvissareiro, pois a obra completa cem anos de seu lançamento original (em língua inglesa), Chess Fundamentals, em Londres, pela editora  G. Bell & Sons. Além disso, também este ano celebra-se um século da conquista do título mundial por Capablanca em seu match contra Lasker realizado na cidade de Havana em 1921.

Chess Fundamentals (primeira edição da obra clássica de Capablanca)
Primeira edição da obra clássica de Capablanca.

Fundamentos do Xadrez foi escrito para ser uma obra permanente, como o próprio Capablanca explica no prefácio à segunda edição de 1934, os fundamentos não mudam jamais! E ele ainda acrescenta: “Fundamentos do Xadrez foi a única obra padrão de seu gênero há treze anos, e o autor acredita firmemente que é a única obra padrão de seu gênero agora”

Capablanca em ação (colorida por Olga)

O livro é voltado para iniciantes, que precisam somente saber como mover as peças para iniciar sua leitura. Na primeira parte da obra, o grande campeão ensina com simplicidade e clareza os conceitos mais importantes do xadrez em suas três fases: abertura, meio-jogo e finais de partida. Na segunda parte do livro, como síntese, Capablanca demonstra a aplicação desses fundamentos em 14 partidas contra destacados mestres, que são detalhadamente comentadas.

Nesta primeira tradução em língua portuguesa, a linguagem do mestre é mantida o mais próxima possível do original, atualizando termos para o jargão mais atual quando necessário. A notação foi atualizada para o sistema algébrico, único reconhecido oficialmente nos dias de hoje.

É, portanto, com muita alegria que podemos oferecer ao leitor de língua portuguesa este clássico da literatura técnica enxadrística que, embora antiga, é de atualidade tremenda, na lucidez dos conceitos de Capablanca, na visão estratégica, no foco que tinha no cuidado com os finais de partida. Segue sendo, como nas palavras de Botvinnik, talvez “o melhor livro de xadrez jamais escrito”.

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Rubinstein, um lance, duas vitórias

A série sobre posições famosas demanda muitas pesquisas em livros, revistas antigas, fóruns de discussão, que trazem muitas descobertas interessantes, além das diversas sugestões de colegas enxadristas. Tais curiosidades, que talvez não estejam exatamente dentro da proposta da série, com frequência dão origem a uma postagem só para elas.

Num antigo livro com 50 partidas seletas, duas me impressionaram em especial. Em ambas, jogava de brancas o grande mestre Akiba Rubinstein e seus adversários eram (ou seriam) campeões mundiais: Lasker e Capablanca, respectivamente. Rubinstein ganhou dos dois usando uma mesma jogada, embora as posições sejam distintas! Seria um método secreto para vencer campeões do mundo?
Rubinstein nasceu na Polônia (então parte do Império Russo) e foi contemporâneo de Lasker, Capablanca, Alekhine, Tarrasch e Marshall, para falar apenas dos famosos cinco grandes mestres originais. A forte concorrência no período em que esteve no auge de sua força enxadrística pode ajudar a entender porque Rubinstein jamais foi campeão mundial. Outros fatores foram sua condição financeira desfavorecida e a eclosão da I Guerra Mundial, quando Rubinstein estava no ápice de sua forma.

Um match com Lasker estava pré-firmado para 1914, quando começou a guerra, e, depois dela, a penível condição econômica europeia impediu que Rubinstein conseguisse levantar os valores pedidos por Lasker como bolsa mínima para a disputa do título (o mesmo aconteceria depois, quando o campeão já era Capablanca).

Segundo os ratings históricos, Rubinstein esteve pelo menos o entre os quatro melhores do mundo no período entre 1905 e 1915 e foi provavelmente o mais forte enxadrista do mundo entre 1912 e 1914. Justamente neste período áureo foram jogadas as partidas contra Lasker e Capablanca, nas quais Rubinstein usa o mesmo lance para obter a vantagem.

Nas posições acima, as partidas se encontram em seu momento crítico. Contra Lasker, era primeiro confronto entre eles, e Rubinstein precisa encontrar uma forma de retomar a torre sem cair num final desfavorável. Contra Capablanca, também o primeiro confronto entre os dois, o grande mestre polonês preparou uma linha aguda de abertura e precisava achar o único lance que não só evitaria ficar mal de imediato, mas deixa as brancas com posição superior!

Na primeira posição, Rubinstein jogou 18. Dc1!, exatamente o mesmo lance (com outras ideias) que fez na segunda, 17. Dc1!!, obtendo em ambas as partidas vantagens de longo prazo que conseguiu converter em vitória algumas jogadas depois.

O xadrez está cheio de coincidências, mas, como vimos, nem todas as coincidências na vida de Rubinstein foram tão felizes como o ‘Dc1‘. O mestre sempre teve uma saude mental frágil e passou boa parte de seus últimos anos em instituições psiquiátricas, especialmente após a morte da esposa em 1954.

Esses traços da personalidade de Rubinstein chamaram a atenção do escritor russo Vladimir Nabokov, que se inspirou nele (como em outros jogadores do início do século XX) para moldar seu personagem principal no livro A Defesa Luzhin, que depois deu origem a um excelente filme homônimo.

Rubinstein pode não ter passado para a história como um campeão mundial, mas suas combinações terão sempre um lugar cativo nos tabuleiros e no imaginário de gerações e gerações de enxadristas. Na próxima vez que puder fazer o lance ‘Dc1‘, lembrarei do mestre e pensarei com cuidado, pode ser uma arma poderosa, principalmente se meu adversário for um Campeão do Mundo!

Bispos Laskantes

Dr. Em. Lasker x J. H. Bauer, Amsterdam 1889
Posição após 13. … a6

Algumas partidas se tornam famosas por belas combinações, por seu peso para o resultado de um torneio ou por mudar a vida de alguém. Em 1889, o então promissor aspirante ao título de Campeão Mundial, Dr. Emanuel Lasker, jogou contra Johan Bauer (forte mestre austríaco à época) uma partida que se celebrizou por ter popularizado um novo tema tático, belo e poderoso. Se a Partida Imortal se eternizou pelo duplo sacrifício de torres, esta entrou para a história por causa de um sacrifício duplo de bispos.

Campeão Mundial por 27 anos (de 1894 a 1921, um recorde), Lasker foi um dos mais fortes enxadristas da história. Além disso, foi um dos últimos campeões com múltiplos talentos, sendo doutor em matemática, filósofo e grande mestre de xadrez. Lasker, aliás, estava no grupo de cinco jogadores aos quais o Czar russo Nicolau II se referiu ao cunhar o termo ‘Grande Mestre’, quando se dirigia aos cinco melhores colocados no Torneio de São Petesburgo de 1914. Um título que se tornou tão significativo que foi oficialmente adotado pela federação  internacional anos depois.

Johann Hermann Bauer deixou pouca informação a seu respeito e, no xadrez, foi mais um a seguir a triste sina de Kieseritzky, passando à posteridade como o derrotado de uma partida fantástica.

Na posição acima, as brancas possuem vantagem de espaço e mobilidade plena de suas peças. Especialmente o par de bispos, que exerce forte pressão sobre o esconderijo do rei negro, tal dois canhões contra uma muralha indefesa. Porém, sem uma rápida providência, as negras podem avançar seu peão da dama, já com forte ação na grande diagonal branca, equilibrando a posição.

Lasker encontrou uma continuação avassaladora: 14. Ch5! C×h5 (se 14 … d4 15. B×f6 B×f6 16. Dg4 Rh8 17. Tf3 e5 18. B×h7 … com forte ataque) 15. B×h7+! R×h7 (se não tomar o bispo, é mate em 4 jogadas, fica como desafio descobrir) 16. D×h5+ Rg8 17. B×g7 R×g7 (novamente, não tomar o bispo leva a um mate forçado em… 8 jogadas!) 19. Dg4 + Rh7 20. Tf3 … As pretas são forçadas a entregar material de volta para não levar mate e a partida se decide facilmente para as brancas. 20. … e5 (única) 21. Th3+ Dh6 22. T×h6 R×h6 22. Dd7 … (retomando um dos bispos) 22. … Bf6 D×b7 e as pretas abandonaram 14 lances depois.

Depois desta partida, o sacrifício do par de bispos contra o roque se tornou um tema muito conhecido  (inclusive, há um livro a respeito) que deve fazer parte do repertório tático de todo jogador, sob risco de ser pego desprevenido, como já se viu até mesmo em outros embates magistrais: Alekhine x Drewitt (1923) e Nimzowitsch x Tarrasch (1914). Este último, aliás, recebeu Prêmio de Beleza no Torneio de São Petesburgo (já citado acima). Conta-se que, quando foi votado o prêmio, Dr. Tarrasch (que nutria  por Lasker um profundo desafeto) perguntou se ele votaria por sua partida, ao que Lasker (em 1914 já Campeão do Mundo) teria respondido: “Claro que sim, sem dúvidas! Afinal uma partida assim só se vê a cada… 25 anos!”


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Jogar contra o adversário ou contra a posição?

No Xadrez, é comum que o nome ou o rating de um jogador possam intimidar seus adversários numa partida. Quando isso acontece, não raras vezes, desperdiçam-se posições superiores ao não conseguir encontrar os melhores lances, pois de alguma forma perde-se a confiança de que seja possível vencer tal jogador com um rating tão alto, ou um mestre, ou um ex-campeão. Eu mesmo fui vítima deste fenômeno algumas vezes.

A solução para isso repousa na máxima: “jogue contra a posição no tabuleiro, não contra o jogador”. Há casos, porém, em que se deve fazer justamente o contrário!

Cada jogador de Xadrez é um ser humano, tem suas preferências e medos (embora alguns grandes mestres digam que não) e se essas características são conhecidas de antemão podemos fazer uso delas nas partidas. Não é à toa que, em preparação para matches, os jogadores analisam as partidas do adversário procurando não só conhecer sua técnica, mas também as nuances psicológicas e características pessoais.

Foi assim, por exemplo, que Kasparov conseguiu minar Karpovno primeiro match ente os dois, em 1984. Após começar jogando como ‘ele mesmo’, Kasparov se viu perdendo por 5 a 0 (exceto os empates), ficando a apenas uma derrota de perder o match. Ele, então, percebeu que precisava começar a jogar de forma mais sólida, exatamente no estilo de seu adversário!. Karpov sentiu os efeitos da mudança de estratégia, e após uma longa série de empates, Kasparov começou a reação. O resto é História.

O jogo psicológico foi uma das armas do antigo campeão mundial Emanual Lasker, conhecido como o melhor psicólogo do jogo dentre os campeões do mundo. Um dos exemplos mais notórios foi sua vitória, em 1914, sobre o jovem J.R. Capablanca no famoso Torneio de São Petesburgo.

Capablanca vinha liderando o torneio jogando partidas calmas, estratégicas, como era seu estilo. Quando chegou a vez de enfrentar Lasker, que vinha somente meio ponto atrás na competição, uma vitória ou mesmo um empate garantiria ao grande cubano o primeiro prêmio do certame.

Lasker jogou de brancas, e empregou a variante das trocas da Ruy Lopez, uma linha de abertura tida como pouco favorável ao primeiro jogador, pois deixava o par de bispos para as pretas e um potencial de ataque muito bom para elas. Porém, como na época Capablanca se sentia pouco à vontade em posições que demandavam uma estratégia de ataque direto, a partida gradualmente se tornou a favor de Lasker, que ganhou brilhantemente.

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Alguns podem dizer que é evidente que a posição deveria sempre prevalecer, mas se esquecem que não é no tabuleiro que se dá a batalha, mas na mente de cada enxadrista!

Xeque-mate no preconceito

O destino muitas vezes nos traz oportunidades inusitadas de provarmos a nós mesmos que somos menos sabidos do que imaginávamos.

A esta inexorável mecânica da vida, nem mesmo o inglês e Grande Mestre Internacional de Xadrez, Nigel Short, foi capaz de escapar.

Causou controvérsia, revolta e fúria um artigo publicado por Short, há alguns meses, no qual o GM dizia literalmente que o cérebro das mulheres era de tal modo construído que as tornava naturalmente menos aptas ao jogo de Xadrez que os homens. Antes deste desastroso artigo, Short era mais conhecido por ter sido o vice-campeão mundial do jogo em 1993, derrotado pelo lendário Kasparov.

Fico pensando o que teria levado um homem culto como ele a falar, ou melhor, escrever, tamanha bobagem. Talvez tenham sido as incontáveis horas desvendando a Abertura dos 4 Cavalos ou o Gioco Piano, que lhe diminuíram a capacidade para outros temas.

Os ânimos arrefeceram e o tempo passou, o assunto estava quase esquecido. Então, como que por mero acaso, foi dada à jovem GM indiana Harika Dronavalli, 12ª do ranking mundial feminino, a oportunidade de fazer Short engolir suas palavras.

Início da partida.
Short, visivelmente desconfortável,  podia estar pensando: “Eu e minha boca…”
(Fonte: Chessbase.com)

A partida aconteceu há poucos dias, na terceira rodada do Torneio Internacional de Gibraltar. Jogando com as peças pretas, o que dificulta um pouco a vitória, Dronavalli, magistralmente, forçou Short a inclinar seu Rei. Não sei se a jovem mestra indiana buscou algum tipo de revanche contra o falastrão inglês, mas o certo é que sua atuação foi impecável, com lances fortíssimos, como o da posição abaixo, que selou a partida.


Posição após 31. Dxd5 … . Pretas jogam e ganham.
No mesmo dia, as mestras Anna Muzychuk (Ucrânia) e Aleksandra Goryachkina (Rússia) também venceram convincentemente seus adversários do sexo oposto, apesar de ambos estarem mais bem colocados do que elas no ranking internacional.


Ao pensar no acontecido, lembrei da famosa frase do ex-campeão do mundo, Emanuel Lasker, “No tabuleiro, mentiras e hipocrisia não duram muito tempo”. Se faltava acrescentar algo a esta afirmação, a GM Harika e suas colegas certamente o fizeram, ao mostrar que nas 64 casas, não há espaço para o préconceito.