1984 e o Xadrez: um enigma no final

O ano de 1984 foi realmente histórico para o xadrez, já que foi quando ocorreu o primeiro confronto entre Anatoly Karpov e Garry Kasparov pelo título mundial de xadrez. Mas não é disso que quero falar, e sim de um dos livros mais importantes escritos no século passado.

Em seu livro 1984, George Orwell fala bastante de xadrez. O jogo é citado diversas vezes, pois é um dos passatempos favoritos do protagonista Winston Smith (talvez por ser um dos poucos exercícios de liberdade de pensamento que não é proibido ou fortemente controlado na ditadura descrita na obra). 

Para mim, a passagem mais interessante fica no final do livro e tem enorme destaque na narrativa. Após ter sido ‘colocado nos eixos’ pelo regime, Winston, sob olhar atento do Grande Irmão, está numa espécie de bar tentando resolver um problema de xadrez com auxílio de um tabuleiro, enquanto acompanha notícias pela tele-tela:

“Examinou o problema de xadrez e arrumou as peças. Era um final complicado, envolvendo um par de cavalos*. ‘Brancas jogam, mate em dois lances’. Winston ergueu os olhos para o retrato do Grande Irmão. As Brancas sempre dão mate, ele pensou, numa espécie de nebuloso misticismo. Sempre, sem exceção, é o que acontece. Em nenhum problema de xadrez desde o início do mundo as Pretas jamais venceram. Não seria um símbolo do triunfo eterno do Bem contra o Mal? O grande rosto encarava-o, cheio de calmo poder. As Brancas sempre dão mate.”

George Orwell, em ‘1984’

*  Em uma das traduções disponíveis no Brasil, comete-se o grave erro de traduzir-se Cavalo (“Knight”) por Bispo (“Bishop”, não usado no texto original), além do deslize de usar o termo ‘Pedras’ para traduzir “Pieces”.

Nessa primeira parte da passagem final sobre o problema de xadrez, chamou minha atenção ao fato de não ser possível (com jogo exato) dar mate apenas com dois Cavalos contra um Rei solitário. O texto fala que o problema ‘envolve um par de Cavalos’, mas omite se havia mais peças (esse pequeno detalhe torna mais grave ainda o erro de tradução que mencionei acima, já que um par de Bispos pode dar mate a um Rei solitário). Um pouco mais além o texto volta a mencionar o problema, o que pode ajudar a esclarecer as intenções do autor:

“Tornou a colocar o Cavalo no lugar anterior**, mas por um instante não pode dedicar-se seriamente ao estudo do problema de xadrez. Seus pensamentos tornaram a vaguear. Quase inconsciente, pôs-se a rabiscar com o dedo na poeira da mesa: 2 + 2 = 5.” 

George Orwell, em ‘1984’

** Enquanto ouvia o noticiário, Winston havia movido um Cavalo, mas não há maiores detalhes sobre isso no texto.

Esta passagem chamou fortemente minha atenção porque a incongruência matemática pode confirmar que no problema em questão só havia no tabuleiro um Rei branco, um par de Cavalos brancos e um Rei preto. Não existe mate com jogo exato, ou seja, 2 + 2 = 4 não é possível, mas é possível um mate ajudado, por uma jogada errada do Rei preto, e aí 2 + 2 = 5. Segue uma posição em que dois Cavalos podem dar mate ajudado a um Rei já cercado:

Nesta posição, é necessário cuidado por parte das Pretas. O natural 1. … ♔h8 leva mate com 2.♘f7# que se chama de ‘mate ajudado’. O correto é 1. … ♔f8 e as Brancas não têm como dar mate.

O livro ainda faz uma derradeira referência ao problema de xadrez, e esta é mais uma xarada magnífica do autor. Segue a passagem:

“Bebeu um novo gole de gim, apanhou o Cavalo branco e fez um lance experimental. Xeque. Evidentemente, porém, não era o lance certo, porque …”

George Orwell, em ‘1984’

E nunca mais se fala do problema, ou do jogo de xadrez. O livro termina alguns parágrafos depois.

Desafio os leitores a descobrir o que Orwell quis dizer, ou seja, o que deveria ter escrito no lugar das reticências. Dica: essa passagem final, bem como a anterior, mostra que ele era não só um forte enxadrista aficionado, mas principalmente que conhecia bem os critérios estéticos aplicados em problemas de xadrez.

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Autor: Rewbenio Frota

Engenheiro por formação e afinidade, escritor e enxadrista por devoção e teimosia. Alguém que deseja aprender (e ensinar aos meus filhos) como podemos viver bem neste mundo que muda a cada momento!

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