Live com Holodeck Editora

Será que a tríade Literatura – Xadrez – Inteligência Artificial tem mesmo algum sentido? Conversa com Katiusha de Moraes da Halodeck Editora.

No último 15 de janeiro, tive a honra de inaugurar uma vibrante série de “lives” promovidas por Katiusha de Moraes em seu novo projeto, a Holodeck Editora, que vem substituir a Editora Expresso Poema pela qual publicamos o livro infantil ‘Que Peça eu Quero Ser?‘. Falamos da fértil tríade Literatura – Xadrez – Inteligência Artificial (IA).

Alguns dos temas que discutimos, por exemplo, foi a ligação de diferentes escritores com o xadrez, em especial o nosso Machado de Assis, que foi um entusiasta do jogo e que publicou um problema de sua autoria em 1877. O mais interessante, e que descobri depois da “live”, é que o problema de Machado foi o primeiro publicado por um brasileiro no país!

As brancas dão xeque-mate em duas jogadas
Machado de Assis/Ilustração Brasileira – 1) HISTÓRIA VIVA: Enigmas no tabuleiro 2) Herculano Gomes Mathias, “Machado de Assis e o jogo de xadrez” (Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, vol. 13, 1952-1964.) (Solução no final da postagem)

Machado de Assis também tomou parte no primeiro torneio de xadrez realizado no país, em 1880. Foi contemporâneo e adversário daquele que é considerado o primeiro mestre brasileiro do jogo, Dr. Caldas Vianna.

A conversa não parou por aí, e tentamos esboçar as relações do xadrez e da literatura com a IA. Não tive como destacar melhor o fantástico conto ‘O Mestre de Moxon’, publicado em 1899 pelo escritor norte-americano Ambrose Bierce. Além de correlacionar o xadrez com a ideia de um autômato inteligente capaz de jogar, Bierce foi um dos pioneiros a descrever o que seria um “robô” antes mesmo dessa palavra ser criada.

A leitura do conto (que se encontra em domínio público e é gratuito em língua inglesa) é fortemente recomendada.

Bierce - Mestre Moxon - PT BR - xadrez literatura IA
Capa de uma versão em português de ‘O Mestre de Moxon’ de Ambrose Bierce

Bierce certamente foi influenciado pelo Turco, um jogador mecânico de xadrez que assombrou muita gente na Europa e América do Norte nos séculos XVIII e XIX. Dentre os ilustres adversários do Turco estão Napoleão Bonaparte e Benjamin Franklin, por exemplo.

Edgar Alan Poe chegou a escrever um ensaio, tratando de desvendar o que ele pensava (com razão) ser uma farsa.

O Turco foi destruído por um incêndio em 1854 (apenas o tabuleiro se salvou e foi usado em uma reconstrução fiel do autômato mais de 100 anos depois).

Apesar de ser uma máquina surpreendente, capaz por exemplo de demonstrar a solução do famoso ‘Caminho do Cavalo‘, a “inteligência” da máquina era devida a um operador humano que se escondia por entre as engrenagens e era efetivamente quem jogava (diferentes pessoas fizeram esse papel ao longo dos anos). O romance ‘A máquina de xadrez‘, de Robert Lohr, traz muitos detalhes sobre o Turco, peça central em sua trama ficcional.

Uma cópia do Turco foi reconstruída em 1984

Falamos ainda de AlphaGo, AlphaZero, Deep Blue, a paixão de Marcel Duchamp pelo xadrez, xadrez feminino e, é claro, da série ‘Gambito da Rainha‘.

A íntegra da “live” está no instagram da Holodeck:

Live do dia 15/01/2021 com Katiusha de Moraes

Agradeço a oportunidade e deixo as portas abertas a outros convites pra falarmos de assuntos que são tão empolgantes para mim! A Holodeck já nasce ligada a esses temas, e acredito que grandes obras e grandes iniciativas serão levadas adiante pela editora.

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Um mate relâmpago no campeão

Retornando à série ‘Posições mais famosas da história do xadrez’ com uma partida inusitada que já vem sendo chamada de “Imortal Brasileira”.

Magnus Carlsen é um homem de seu tempo e sabe usar a internet para promover o jogo que ama e que o tornou famoso. A pandemia da covid-19 deu ao xadrez online uma dimensão que jamais havia tido, e o campeão mundial soube aproveitar (mas não apenas ele, como veremos).

Além dos torneios online que organiza, com frequência ele dá a fortes jogadores de blitz espalhados pelo mundo a chance de enfrentá-lo. Numa dessas partidas, Carlsen enfrentou o GM brasileiro Luis Supi. A partida se tornou um clássico instantâneo, não só pela raridade de se ver Carlsen derrotado em poucos lances, mas por seu desfecho genial! Sem faltar, claro, no aparecimento duma chuva de “memes” e piadas, por causa das reações de Carlsen.

Supi (São Paulo, 1996 – ) é o 14º GM brasileiro, título homologado em 2018. Atualmente é o #2 do Brasil na lista ativa de rating FIDE, atrás apenas do GM Rafael Leitão.

Na posição acima, Supi está com uma peça a menos, mas tem absoluta iniciativa, e começa a demonstrar a Carlsen que não é um mestre qualquer: 16. Ta2 um lance de aparência calma, mas que traz a incômoda ameaça de dobrar as torres na coluna ‘a’. 16 … Df5 Stockfish prefere 16 …De6, mas a verdade é que as pretas já não têm muitas opções. 17.Tfa1 Rc8 Apenas o triste 17 … Db1+ conseguiria atrasar um pouco a derrota. Supi arremata com um lance que até a engine demora um pouco a encontrar! Um sacrifício de dama no melhor estilo ‘Lewitsky × Marshall’, só que ainda mais belo: 18.Dc6!! Carlsen olha atônito e precisa de alguns centésimos de segundo para soltar um “Outch” e fazer uma careta que invejaria até mesmo o velho Ogro de Baku. Depois abandona, pede revanche e segue com elogios ao lance do brasileiro.

Xadrez: Carlsen atônito
Carlsen: um campeão atônito!

Segue abaixo a partida completa no visor:

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Xadrez não é o jogo da imitação

Apesar de comum entre iniciantes no xadrez, repetir as jogadas do adversário não é uma boa ideia. Capablanca nos ensina magistralmente.

Quando uma partida de xadrez é iniciada, existe um perfeito equilíbrio, uma exata simetria. Não fossem as cores alternadas de tabuleiro e peças, os dois bandos pareceriam exata imagem especular um do outro. Só há uma diferença, alguém tem que começar a partida, e esse pequeno desequilíbrio se revela crucial!

A convenção é que as brancas começam, o que deixa o exército preto com a necessidade de compensar o fato de estar sempre um passo em atraso.

Muitos iniciantes, assim, têm uma ideia que parece promissora, principalmente contra jogadores bem mais fortes: repetir exatamente as jogadas do adversário.

A princípio, parece uma boa ideia e, na infinitude de possibilidades para uma partida de xadrez, deve haver pelo menos milhares de situações em que se possa chegar ao empate, mas o fato é que manter a simetria em fases cada vez mais avançadas da partida quase sempre amplifica a vantagem de quem está um lance à frente.

Segue um exemplo simples que, apesar de inverossímil, mostra de cara que não é verdade que SEMPRE repetir o lance do branco leva o preto ao empate:

O caso acima não será visto numa partida real, porém ilustra bem o risco de sempre manter a posição simétrica, postergando e amplificando a vantagem das brancas de ter o primeiro lance: quem tem a vez de jogar pode estar a apenas um lance do mate!

Um segundo exemplo mais realista e ilustrativo vem duma partida centenária jogada pelo ex-campeão mundial José Raul Capablanca em 1918, provavelmente numa sessão de simultâneas. Seu adversário (cujo nome foi não preservado, daí o uso de N.N.) achou seguro repetir os lances do lendário campeão, até receber uma dura lição:

O xadrez não é um jogo contra o espelho, como nos lembram as diferentes cores dos exércitos; enquanto no espelho estamos em frente a nós mesmos, no xadrez, há sempre alguém com ideias próprias do outro lado do tabuleiro !

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O Lance que Fischer não fez

Em 1961, Fischer, um astro em ascensão,  jogou um match contra o antigo menino prodígio e consagrado grande mestre norte-americano Samuel Reshevsky. Uma das armas do veterano era a variante acelerada da Defesa Siciliana Dragão contra a perene abertura do peão do rei de Fischer.

A sexta partida, desembocou na seguinte posição:

Fischer × Reshevsky (Los Angeles, 1961 – 6ª partida do match)
Posição pós 11.Bf6

Fischer optou pela pacífica linha 12. Dg4 d6 13 Dd1, que deixa as pretas em boa posição. A partida terminou com a divisão do ponto. Análises subsequentes acabaram por conferir a esta subvariante uma fama de “empatativa”, de modo que o próprio Fischer alterou seus planos para o mais sólido sistema Maroczy contra a Dragão.

No ano seguinte, a mais de 8000 km de distância, a posição acima se repetiu numa partida de um evento por equipes na URSS entre o Mestre Internacional Rashid Nezhmetdinov e o Grande Mestre Internacional Oleg Chernikov.

Talvez a partida de Fischer fosse conhecida de ambos os soviéticos, mas o fato é que Nezhmetdinov começou a pensar além do normal para uma posição com opções tão limitadas e com desfecho tão claro: o empate por repetição de lances (após 12. Dh6 Bg7 13. Dh4 Bf6 etc) ou pela linha escolhida por Fischer. Chernikov pôs-se a passear pelo salão, e chegou até mesmo a perguntar para Vladimir Voloshin, amigo de Nezhmetdinov: “Você sabe porque Rashid Gibyatovich está pensando tanto? É uma posição morta. Se ele queria evitar o empate, deveria ter pensado antes” Foi quando um garoto chegou até ele dizendo: “Senhor, ele acaba de sacrificar a dama!”.

Quando Chernikov voltou ao tabuleiro, estava jogado o fantástico lance que Fischer não fez: 12.D×f6!! Um dos sacrifícios intuitivos mais fantásticos da história do xadrez.

A partida seguiu com 12.… Ce2+ 13.C×e2 e×f6 14.Cc3 … O plano das brancas se baseia em explorar a grande diagonal a1h8 desguarnecida pelo bispo da Dragão que foi tomado pela dama, e trazer uma torre até f3. 14.… Te8 (muitos analistas indicaram que teria sido melhor continuar com 14.… d5, após o qual Nezhmetdinov teria jogado 15.Bd4! e usar plano similar ao da partida) 15.Cd5 Te6 16.Bd4 Rg7 17.Tad1 d6 18.Td3 Bd7 19.Tf3 Bb5 20.Bc3 Dd8 21.C×f6! mais uma vez um lance crucial na casa f6 ! 21.… Be2 22.C×h7+! Rg8 23.Th3 Te5 24.f4! 24.… B×f1 25.R×f1 Tc8 26.Bd4! O bispo vale muito mais que a torre inimiga! 26.… b5 27.Cg5 Tc7 … As brancas lançam mão de elegante combinação final para simplificar a posição com 28.B×f7+! T×f7 29.Th8+ R×h8 30.C×f7+ Rh7 31.C×d8 T×e4 32.Cc6 T×f4+ 33.Re2 Apesar de o final ainda demandar técnica por parte das brancas para ser vencido, Chernikov reconhecia que aquele era o dia de Nezhmetdinov, ou talvez ele só quisesse finalmente poder levantar-se a cadeira (1-0).

Rashid Nezhmetdinov Mestre de Xadrez
Rashid Gibiatovich Nezhmetdinov

Nezhmetdinov, um mestre pouco conhecido fora da ‘Cortina de Ferro’, mas cujo ímpeto de ataque lhe rendeu a alcunha de “enxadrista assassino“, foi grande amigo e grande influenciador de Mikhail Tal (contra quem, aliás teve escore positivo +3 -1 =0!).

Realmente uma lástima que, por diversos motivos, nunca tivemos um confronto “Fischer × Nezhmetdinov”, teria sido épico!

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Xadrez brasileiro no Youtube

A comunidade enxadrística brasileira na internet tem migrado de conteúdos quase que exclusivamente baseados em blogs e fanpages no Facebook para o formato audiovisual, que permite maior dinamismo, maior envolvimento com o público e traz o potencial de atrair milhares de pessoas para o xadrez. Há tempos que se sentia a carência de grandes canais de partidas, táticas, finais etc, que são abundantes em espanhol e inglês, feito por brasileiros.
Com efeito, já temos hoje canais como o Xadrez Brasil, do Rafael Leite, que superam em números de inscritos um canal internacional famoso como o Power Play Chess, do GM Daniel King. Não vai demorar até alcançarmos no país canais com mais inscritos que o MatoJelic (+150 mil) ou até mesmo o aparentemente inalcançável canal do Agadmator (+400 mil).
O interessante nesse espaço no YouTube é que mesmo os grandes mestres brasileiros como Krikor Mekhitarian (+22 mil) Evandro Barbosa (+17 mil) e Rafael Leitão (+7 mil) disputam a audiência com nomes que sustentam menor ELO FIDE, mas que têm conseguido boa presença online, como o Rafael Leite, citado acima, e o Renan Araújo (+48 mil). Apesar de ainda ser um canal relativamente pequeno, vale a pena citar o trabalho da jovem Beatriz Ibrahim, (+ 1 mil) que com certeza é enorme estímulo para a prática do xadrez por cada vez mais mulheres.
Enquanto que os grandes nomes são conhecidos por muitos de nós, é interessante saber mais sobre aqueles antes pouco conhecidos que agora galgam seu espaço falando com muita propriedade e zelo do nosso querido jogo.
Entrei em contato com alguns dos canais citados acima convidando os responsáveis para uma entrevista curta, de modo a divulgar um pouco mais sobre eles e seus canais no YouTube. Alguns já responderam e em breve as entrevistas serão publicadas aqui conforme as respostas cheguem.
Será que esqueci de algum canal interessante? Deixe sua sugestão nos comentários.