Um mate relâmpago no campeão

Retornando à série ‘Posições mais famosas da história do xadrez’ com uma partida inusitada que já vem sendo chamada de “Imortal Brasileira”.

Magnus Carlsen é um homem de seu tempo e sabe usar a internet para promover o jogo que ama e que o tornou famoso. A pandemia da covid-19 deu ao xadrez online uma dimensão que jamais havia tido, e o campeão mundial soube aproveitar (mas não apenas ele, como veremos).

Além dos torneios online que organiza, com frequência ele dá a fortes jogadores de blitz espalhados pelo mundo a chance de enfrentá-lo. Numa dessas partidas, Carlsen enfrentou o GM brasileiro Luis Supi. A partida se tornou um clássico instantâneo, não só pela raridade de se ver Carlsen derrotado em poucos lances, mas por seu desfecho genial! Sem faltar, claro, no aparecimento duma chuva de “memes” e piadas, por causa das reações de Carlsen.

Supi (São Paulo, 1996 – ) é o 14º GM brasileiro, título homologado em 2018. Atualmente é o #2 do Brasil na lista ativa de rating FIDE, atrás apenas do GM Rafael Leitão.

Na posição acima, Supi está com uma peça a menos, mas tem absoluta iniciativa, e começa a demonstrar a Carlsen que não é um mestre qualquer: 16. Ta2 um lance de aparência calma, mas que traz a incômoda ameaça de dobrar as torres na coluna ‘a’. 16 … Df5 Stockfish prefere 16 …De6, mas a verdade é que as pretas já não têm muitas opções. 17.Tfa1 Rc8 Apenas o triste 17 … Db1+ conseguiria atrasar um pouco a derrota. Supi arremata com um lance que até a engine demora um pouco a encontrar! Um sacrifício de dama no melhor estilo ‘Lewitsky × Marshall’, só que ainda mais belo: 18.Dc6!! Carlsen olha atônito e precisa de alguns centésimos de segundo para soltar um “Outch” e fazer uma careta que invejaria até mesmo o velho Ogro de Baku. Depois abandona, pede revanche e segue com elogios ao lance do brasileiro.

Xadrez: Carlsen atônito
Carlsen: um campeão atônito!

Segue abaixo a partida completa no visor:

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Leão derruba Torre no xadrez

É muito raro que um jogador dê chances de sofrer derrotas espetaculares contra um mesmo adversário, mas quando acontece, normalmente entra para a história.

No princípio dos anos 1980, o promissor grande mestre filipino Eugênio Torre sofreu uma derrota contundente, que se tornou famosa, contra o lendário soviético Lev Polugaevsky.

A fantástica variante que segue após 14.d×e6! sacrificando uma torre inteira, fez dessa partida uma das mais comentadas da história do jogo! Torre nem pestanejou, pois a teoria da época lhe dava segurança, mas a posição (e a teoria daquela abertura) foi completamente alterada após 18.h4!!. Mesmo passado seu auge, Polugaevsky aplicou seu método profundo de busca da essência das posições de xadrez e encontrou uma joia. A ideia é que a “jaula” formada pelos peões na ala do rei tornaria inútil a torre extra das pretas. Até esta partida, a teoria apontava que as brancas devariam optar por 14. e×f8=D!? com melhores chances para as pretas (por exemplo na partida Beliavsky × Bagirov , jogada menos de 3 meses antes, naquele mesmo ano de 1981, e que acabou empatada).

No ano seguinte, em 1982, Torre teve sua revanche, numa partida longa, mas teve o cuidado de mudar a abertura.

Apenas 2 anos depois, Torre enfrentou novamente Polugaevsky, mais uma vez com as peças pretas. Talvez achasse que o famoso soviético estivesse sentindo o peso dos anos e pensou em reverter o escore entre os dois (que então estava empatado). Usou a mesma defesa que lhe dera a vitória em 1982.

Talvez o medo de sofrer nova derrota tenha antecipado justamente esse resultado, pois o filipino jogou bem pior que da primeira vez, praticamente entregando ao adversário uma combinação similar à famosa Lasker × Bauer, quando fez o péssimo 18. … Cb8?? . Segue a partida completa.

Torre e Polugaevsky ainda se enfrentariam 4 vezes, mas o filipino não conseguiu vencer nenhuma delas (-1 =3). Descobriu com essas derrotas aquilo que facilmente saberia se soubesse a língua russa: Lev, o primeiro nome de seu algoz, significa Leão.

Sobre os jogadores

Lev Polugaevsky

Polugaevsky (URSS/Bielorússia, 1934 — 1995) foi um jogador de grande renome internacional. Campeão absoluto da URSS duas vezes, em 1967 e 1978, além de ter empatado pelo título de 1969 com Petrosian. Foi três vezes candidato ao título mundial (numa delas, no ciclo 1976-78, ele derrotou o grande mestre brasileiro Henrique Mecking nas quartas de final, +1 -0 =11), porém nunca chegou a ser o desafiante oficial. Foi um grande teórico de aberturas, inclusive deu nome a uma importante variante da Defesa Siciliana Najdorf: 1.e4 c5 2.Cf3 d6 3.d4 c×d4 4.C×d4 Cf6 5.Cc3 a6 6.Bg5 e6 7.f4 b5. Escreveu um dos livros mais respeitados sobre o xadrez de alto nível, “Grandmaster Preparation” (1981), no qual, entre outros temas, mostra com detalhes o profundo processo para desenvolver a variante que leva seu nome.

Torre (Filipinas, 1951 — ) foi candidato ao título mundial no ciclo 1981-1984, qualificado após vencer o Interzonal de Toluca em 1982 (junto com Portisch), mas foi derrotado nas semi-finais por Ribli. Teve estreita relação com Fischer nós anos 1980-1990, e foi segundo do norte-americano em seu match de retorno em 1992 contra Spassky. Foi o primeiro asiático da história a receber o título de Grande Mestre da FIDE, em reconhecimento a sua medalha de prata individual na Olimpíada de Xadrez de Nice em 1974. Uma vitória importante de sua carreira foi o torneio de Manila de 1976, no qual terminou à frente do campeão mundial Anatoly Karpov, a quem venceu num dos confrontos individuais durante o evento. Um ponto interessante de sua carreira é que ele participou de todas as olimpíadas de xadrez desde 1970 (exceto a de 2008) até 2016. Segue como um dos melhores jogadores em atividade de seu país.

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Bispos Laskantes

Dr. Em. Lasker x J. H. Bauer, Amsterdam 1889
Posição após 13. … a6

Algumas partidas se tornam famosas por belas combinações, por seu peso para o resultado de um torneio ou por mudar a vida de alguém. Em 1889, o então promissor aspirante ao título de Campeão Mundial, Dr. Emanuel Lasker, jogou contra Johan Bauer (forte mestre austríaco à época) uma partida que se celebrizou por ter popularizado um novo tema tático, belo e poderoso. Se a Partida Imortal se eternizou pelo duplo sacrifício de torres, esta entrou para a história por causa de um sacrifício duplo de bispos.

Campeão Mundial por 27 anos (de 1894 a 1921, um recorde), Lasker foi um dos mais fortes enxadristas da história. Além disso, foi um dos últimos campeões com múltiplos talentos, sendo doutor em matemática, filósofo e grande mestre de xadrez. Lasker, aliás, estava no grupo de cinco jogadores aos quais o Czar russo Nicolau II se referiu ao cunhar o termo ‘Grande Mestre’, quando se dirigia aos cinco melhores colocados no Torneio de São Petesburgo de 1914. Um título que se tornou tão significativo que foi oficialmente adotado pela federação  internacional anos depois.

Johann Hermann Bauer deixou pouca informação a seu respeito e, no xadrez, foi mais um a seguir a triste sina de Kieseritzky, passando à posteridade como o derrotado de uma partida fantástica.

Na posição acima, as brancas possuem vantagem de espaço e mobilidade plena de suas peças. Especialmente o par de bispos, que exerce forte pressão sobre o esconderijo do rei negro, tal dois canhões contra uma muralha indefesa. Porém, sem uma rápida providência, as negras podem avançar seu peão da dama, já com forte ação na grande diagonal branca, equilibrando a posição.

Lasker encontrou uma continuação avassaladora: 14. Ch5! C×h5 (se 14 … d4 15. B×f6 B×f6 16. Dg4 Rh8 17. Tf3 e5 18. B×h7 … com forte ataque) 15. B×h7+! R×h7 (se não tomar o bispo, é mate em 4 jogadas, fica como desafio descobrir) 16. D×h5+ Rg8 17. B×g7 R×g7 (novamente, não tomar o bispo leva a um mate forçado em… 8 jogadas!) 19. Dg4 + Rh7 20. Tf3 … As pretas são forçadas a entregar material de volta para não levar mate e a partida se decide facilmente para as brancas. 20. … e5 (única) 21. Th3+ Dh6 22. T×h6 R×h6 22. Dd7 … (retomando um dos bispos) 22. … Bf6 D×b7 e as pretas abandonaram 14 lances depois.

Depois desta partida, o sacrifício do par de bispos contra o roque se tornou um tema muito conhecido  (inclusive, há um livro a respeito) que deve fazer parte do repertório tático de todo jogador, sob risco de ser pego desprevenido, como já se viu até mesmo em outros embates magistrais: Alekhine x Drewitt (1923) e Nimzowitsch x Tarrasch (1914). Este último, aliás, recebeu Prêmio de Beleza no Torneio de São Petesburgo (já citado acima). Conta-se que, quando foi votado o prêmio, Dr. Tarrasch (que nutria  por Lasker um profundo desafeto) perguntou se ele votaria por sua partida, ao que Lasker (em 1914 já Campeão do Mundo) teria respondido: “Claro que sim, sem dúvidas! Afinal uma partida assim só se vê a cada… 25 anos!”


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Jogar contra o adversário ou contra a posição?

No Xadrez, é comum que o nome ou o rating de um jogador possam intimidar seus adversários numa partida. Quando isso acontece, não raras vezes, desperdiçam-se posições superiores ao não conseguir encontrar os melhores lances, pois de alguma forma perde-se a confiança de que seja possível vencer tal jogador com um rating tão alto, ou um mestre, ou um ex-campeão. Eu mesmo fui vítima deste fenômeno algumas vezes.

A solução para isso repousa na máxima: “jogue contra a posição no tabuleiro, não contra o jogador”. Há casos, porém, em que se deve fazer justamente o contrário!

Cada jogador de Xadrez é um ser humano, tem suas preferências e medos (embora alguns grandes mestres digam que não) e se essas características são conhecidas de antemão podemos fazer uso delas nas partidas. Não é à toa que, em preparação para matches, os jogadores analisam as partidas do adversário procurando não só conhecer sua técnica, mas também as nuances psicológicas e características pessoais.

Foi assim, por exemplo, que Kasparov conseguiu minar Karpovno primeiro match ente os dois, em 1984. Após começar jogando como ‘ele mesmo’, Kasparov se viu perdendo por 5 a 0 (exceto os empates), ficando a apenas uma derrota de perder o match. Ele, então, percebeu que precisava começar a jogar de forma mais sólida, exatamente no estilo de seu adversário!. Karpov sentiu os efeitos da mudança de estratégia, e após uma longa série de empates, Kasparov começou a reação. O resto é História.

O jogo psicológico foi uma das armas do antigo campeão mundial Emanual Lasker, conhecido como o melhor psicólogo do jogo dentre os campeões do mundo. Um dos exemplos mais notórios foi sua vitória, em 1914, sobre o jovem J.R. Capablanca no famoso Torneio de São Petesburgo.

Capablanca vinha liderando o torneio jogando partidas calmas, estratégicas, como era seu estilo. Quando chegou a vez de enfrentar Lasker, que vinha somente meio ponto atrás na competição, uma vitória ou mesmo um empate garantiria ao grande cubano o primeiro prêmio do certame.

Lasker jogou de brancas, e empregou a variante das trocas da Ruy Lopez, uma linha de abertura tida como pouco favorável ao primeiro jogador, pois deixava o par de bispos para as pretas e um potencial de ataque muito bom para elas. Porém, como na época Capablanca se sentia pouco à vontade em posições que demandavam uma estratégia de ataque direto, a partida gradualmente se tornou a favor de Lasker, que ganhou brilhantemente.

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Alguns podem dizer que é evidente que a posição deveria sempre prevalecer, mas se esquecem que não é no tabuleiro que se dá a batalha, mas na mente de cada enxadrista!