A realidade, o xadrez e a matrix

Será fácil descobrir o que é real, verdadeiro? Até no xadrez, os grandes campeões divergem em suas opiniões. Um exemplo foi Kasparov x Karpov em 1990.

– Isso não é real?
– O que é “real”? Como você define “real”? Se você está se referindo ao que você pode sentir, cheirar, provar e ver, então “real” não passa da interpretação de sinais elétricos pelo cérebro. Esse é o mundo que você conhece. O mundo como ele era no século XX. Ele agora existe apenas como uma simulação neurointerativa que nós chamamos MATRIX. Você vivia em um mundo de sonho, Neo.
(The Matrix, 1999. Diálogo entre Morpheus e Neo, tradução livre)

Vivemos todos no mesmo planeta, me parece razoável afirmar. Porém, este mundo real em que vivemos é percebido de forma diferente por cada um de nós. A realidade objetiva seria então como uma tela que contemplamos na parede de um museu, e voltamos para casa cada um com uma versão da obra, interpretada com base no que vimos e sentimos.

Mesmo em cenários mais simples que a vida, a realidade não consegue se impor de forma absoluta ao crivo dos sentidos, das crenças, do conhecimento acumulado, ou da falta dele. Um desses cenários pode ser o jogo de xadrez.

Façamos um experimento: tomemos os dois melhores jogadores de xadrez do mundo, coloquemos os dois perante um tabuleiro onde as peças já se encontram numa dada configuração, a que chamamos de posição. Neste caso, a posição faz o papel da realidade objetiva. O que eles diriam sobre ela? Eles concordariam?

Felizmente, podemos usar um caso real de uma partida do Campeonato Mundial de Xadrez de 1990, entre dois dos maiores enxadristas de todos os tempos, Garry Kasparov e Anatoly Karpov. Somos tão afortunados, que existe um documentário sobre esta disputa, no qual os dois grandes mestres explicam suas ideias em cada partida.

A vigésima partida daquele encontro foi decisiva para o desfecho do mundial. O ponto crucial é mostrado no diagrama abaixo, que mostra a posição após o vigésimo quinto lance das brancas:

Posição da partida 20 do macth Kasparov x Karpov de 1990.
Kasparov × Karpov (Lyon, 1990) m20 após 25. Cg4.

Vejamos o que eles disseram sobre a posição e sobre a jogada seguinte de Karpov (que tinha a vez e conduzia as peças pretas):

  • Kasparov (aprox. 1:24:23): “Aqui o único lance é 25. … Cd3 (…) Karpov jogou um lance natural 25. … De8, que parece ser muito bom… prega meu cavalo, protege as casas brancas… (…), mas aqui a posição exigia o melhor lance (…) agora (após 25. … De8) as brancas tem vantagem decisiva.”
  • Karpov (aprox. 1:26:20): “Aqui, eu me sentia com posição muito boa, inclusive já considerava como eu poderia até mesmo vencer, mas deveria ter sido mais cuidadoso, como foi demonstrado na partida (…) eu deveria ter jogado 25. … Cd3.”

Assim, durante a partida, os mestres divergiram sobre a natureza da posição e seu resultado provável: Kasparov via a posição como equilibrada, porém demandava cuidados por parte das pretas; Karpov já se sentia muito confortável, pensando que estava prestes a vencer.

Somente a posteriori, no dia que foram entrevistados para o documentário, ambos concordaram sobre a natureza da posição e sobre qual deveria ter sido a jogada correta das pretas. Foi como se o artista aparecesse na galeria e explicasse o que ele havia pintado: tudo ficou claro.

É impressionante como dois especialistas podem divergir tanto quanto a um aspecto objetivo de sua área de expertise. Este exemplo nos mostra que as divergências de percepção e julgamento nas situações mais complexas da vida são inevitáveis.

Vale lembrar ainda, no caso dos mestres de xadrez, que a realidade da posição pode ainda ser diferente do veredito final fornecido por ambos (um provável empate após 25. … Cd3). Um dia os computadores resolverão o jogo, e só então saberemos a resposta. A vida, felizmente, é mais complexa que o xadrez, mesmo (e especialmente) para os computadores.

A MATRIX não pode te dizer quem você é. (The Matrix, 1999. De Trinity para Neo, tradução livre)

Para nós resta compreender o pouco que nos é dado a desvendar da realidade e saber conviver com (e em certos casos, sobreviver a) a versão dos outros que participam conosco deste grande jogo da vida.

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Os mais inteligentes do mundo hoje

Quem são as pessoas mais inteligentes do mundo hoje? Recentemente, foi elaborada uma lista de 30 gênios da atualidade. O site que divulgou a lista é dedicado a orientar sobre escolha de universidades ao redor do mundo. Pela própria natureza do site, dentre os 30 citados, a maioria é composta por cientistas, quase todos matemáticos e físicos. Mas a lista traz 3 enxadristas, todos grandes mestres (GM).
Fonte: JufitPolgar.com
A primeira citada é a GM Judit Polgar (39 anos, Hungria). Judit é a mais nova de três irmãs enxadristas, todas grandes mestres de Xadrez, todas treinadas segundo o método desenvolvido pelo pai delas, Lazlo Polgar. Lazlo acreditava que um gênio em qualquer área poderia ser formado por treinamento adequado, com pouca influência do talento ou aptidão natural, e resolveu provar seu método em suas próprias filhas usando o Xadrez como área de especialidade. Judit foi uma menina prodígio e tornou-se GM (título absoluto entre homens e mulheres) em 1991, aos 15 anos e 4 meses de idade, quebrando um recorde que pertencia, então, ao lendário Bobby Fischer (desde Judit, esse recorde já foi quebrado 5 vezes, e é mantido hoje pelo russo Sergey Karjakin, que foi GM aos 12 anos e 7 meses de idade). Judit foi a responsável por realmente levar às mulheres o respeito merecido em torneios internacionais, tradicionalmente dominados por homens. Foi a única mulher até hoje a figurar entre os 10 melhores jogadores do mundo e foi a líder do ranking mundial feminino por mais de 25 anos (ainda é a única mulher a ter ultrapassado a pontuação de 2700). Ela sempre jogou somente torneios mistos e, por exemplo, nunca disputou o Campeonato Mundial feminino. Judit aposentou-se das competições em 2014 e atua na divulgação do Xadrez como ferramenta de desenvolvimento pessoal.
Fonte: www.kasparov.com
Em seguida, a lista cita o GM e ex-campeão do mundo Garry Kasparov (52 anos, Rússia). Kasparov certamente é o mais famoso enxadrista do mundo, principalmente após sua derrota para o computador Deep Blue da IBM em 1997. Muitos apontam Kasparov como o melhor enxadrista de todos os tempos, dada sua grande predominância sobre seus contemporâneos e também pelo fato de ele ter sido o primeiro a ultrapassar a pontuação de 2800 no ranking mundial. Ele foi o campeão mundial mais jovem da história, aos 22 anos de idade, quando derrotou pela primeira vez seu compatriota Anatoly Karpov, e também liderou o ranking mundial por 31 anos. Após abandonar o Xadrez competitivo em 2005, Kasparov tem se dedicado ao ativismo político, sendo uma das principais vozes contra Vladimir Putin na Rússia.
Fonte: www.chessbase.com
O terceiro enxadrista citado na lista é o atual campeão mundial GM Magnus Carlsen (25 anos, Noruega). Carlsen tornou-se GM aos 13 anos, 4 meses e 27 dias, é o campeão mundial de Xadrez desde 2013 quando derrotou o Indiano Wishanathan Anand. O fato de Carlsen vir de um país sem tradição enxadrística faz muitos acreditarem que ele é um dos maiores talentos naturais para o jogo desde o cubano Capablanca, fato acentuado ainda mais pelas semelhanças de estilo entre eles. A ascensão de Carlsen no cenário mundial foi meteórica até a quarta ou quinta posição no ranking mundial. A subida posterior foi devida, em parte, à parceria feita em 2009 com Kasparov. O trabalho entre os dois foi responsável pelos ajustes finos que levaram Carlsen a ser o mais jovem número 1 do mundo da história, aos 19 anos. A jovem figura de Carlsen, que quebra a estereotipada imagem do enxadrista profissional, tem sido benéfica na divulgação do jogo. Alguns o chamam de ‘Justin Bieber’ do Xadrez, e o campeão tem sido até mesmo convidado para trabalhar como modelo junto a atrizes famosas como Liv Tyler. Este ano Magnus deve defender seu título contra o vencedor do Torneio de Candidatos que está em andamento na cidade de Moscou.

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Jogar contra o adversário ou contra a posição?

No Xadrez, é comum que o nome ou o rating de um jogador possam intimidar seus adversários numa partida. Quando isso acontece, não raras vezes, desperdiçam-se posições superiores ao não conseguir encontrar os melhores lances, pois de alguma forma perde-se a confiança de que seja possível vencer tal jogador com um rating tão alto, ou um mestre, ou um ex-campeão. Eu mesmo fui vítima deste fenômeno algumas vezes.

A solução para isso repousa na máxima: “jogue contra a posição no tabuleiro, não contra o jogador”. Há casos, porém, em que se deve fazer justamente o contrário!

Cada jogador de Xadrez é um ser humano, tem suas preferências e medos (embora alguns grandes mestres digam que não) e se essas características são conhecidas de antemão podemos fazer uso delas nas partidas. Não é à toa que, em preparação para matches, os jogadores analisam as partidas do adversário procurando não só conhecer sua técnica, mas também as nuances psicológicas e características pessoais.

Foi assim, por exemplo, que Kasparov conseguiu minar Karpovno primeiro match ente os dois, em 1984. Após começar jogando como ‘ele mesmo’, Kasparov se viu perdendo por 5 a 0 (exceto os empates), ficando a apenas uma derrota de perder o match. Ele, então, percebeu que precisava começar a jogar de forma mais sólida, exatamente no estilo de seu adversário!. Karpov sentiu os efeitos da mudança de estratégia, e após uma longa série de empates, Kasparov começou a reação. O resto é História.

O jogo psicológico foi uma das armas do antigo campeão mundial Emanual Lasker, conhecido como o melhor psicólogo do jogo dentre os campeões do mundo. Um dos exemplos mais notórios foi sua vitória, em 1914, sobre o jovem J.R. Capablanca no famoso Torneio de São Petesburgo.

Capablanca vinha liderando o torneio jogando partidas calmas, estratégicas, como era seu estilo. Quando chegou a vez de enfrentar Lasker, que vinha somente meio ponto atrás na competição, uma vitória ou mesmo um empate garantiria ao grande cubano o primeiro prêmio do certame.

Lasker jogou de brancas, e empregou a variante das trocas da Ruy Lopez, uma linha de abertura tida como pouco favorável ao primeiro jogador, pois deixava o par de bispos para as pretas e um potencial de ataque muito bom para elas. Porém, como na época Capablanca se sentia pouco à vontade em posições que demandavam uma estratégia de ataque direto, a partida gradualmente se tornou a favor de Lasker, que ganhou brilhantemente.

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Alguns podem dizer que é evidente que a posição deveria sempre prevalecer, mas se esquecem que não é no tabuleiro que se dá a batalha, mas na mente de cada enxadrista!

A classe operária (finalmente) vai ao paraíso

Há muitos anos, numa edição da antiga revista brasileira XADREZ CIÊNCIA (que era editada pela PROMOCHESS, dirigida por Rubens Filguth*) encontrei uma análise da 4ª partida do Match de 1990 entre Kasparov e Karpov pelo título mundial (que viria a ser o 5º e último match entre dois valendo o título oficial de campeão do mundo) cujo título me causou grande impacto. A análise era intitulada “A CLASSE OPERÁRIA NÃO VAI AO PARAÍSO”, clara referência ao filme famoso da década de 1970 A CLASSE OPERÁRIA VAI AO PARAÍSO (fato que na época eu ignorava). O interessante nesta partida é que Karpov, que jogava com as peças negras, chegou na seguinte posição com 4 peões passados e unidos:
Kasparov x Karpov (match 1990, partida 4) após 31. Rg2 (-+). Fonte: chessgames.com 
Após mais alguns lances, com pouco tempo antes do controle na 40ª jogada, Karpov erra com 39. … Df7 (tirando a única casa de escape de seu Rei contra o xeque-perpétuo), chegando na posição do diagrama abaixo:
Kasparov x Karpov (match 1990, partida 4) após 39. … Df7 (=). Fonte: chessgames.com
A partida terminou com empate por xeque-perpétuo. Daí a comparação com o filme, pois nenhum dos peões (a classe operária do xadrez) conseguiu coroar e dar a vitória ao negro. Como sabemos, o match terminou com apenas 1 ponto de vantagem para Kasparov, e esta partida poderia ter feito muita diferença.
Lembrei-me desta partida hoje quando acompanhava o Match de Candidatos da FIDE, em andamento, e fui ver a vitória de Gelfand (de negras) sobre Mamedyarov. Pela posição final (Gelfand tem posição ganhadora com 6 peões em troca de uma torre – 5 deles passados e 2 deles na sexta fila), percebe-se que, desta vez, a classe operária foi ao paraíso (ou fatalmente iria, não fosse o abandono do branco):
Mamedyarov x Gelfand (match 2011, partida 3) 0-1. Fonte: Blog da Susan Polgar
O Match de Candidatos segue amanhã com a 4ª e última partida pensada desta fase. Apenas Kamsky (contra Topalov) e Gelfand (contra Mamedyarov) conseguiram vencer até o momento, e um empate na última rodada garantem os dois na próxima fase do Ciclo de Candidatos. Se ocorrer empate na pontuação após 4 partidas, a decisão será nas partidas rápidas. Esta, aliás, parece ser a estratégia seguida por Radjabov (contra Kramnik) e Grischuk (contra Aronian), como 3 empates até o momento.

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*A análise “A classe Operária não vai ao paraíso” citada nesta postagem também pode ser encontrara no livro “K x K, Perestróika no Tabuleiro” de Herbert Carvalho & Rubens Filguth (esgotado, mas disponível em sebos certamente).