Um erro famoso e instrutivo

Um erro certamente não proposital criou um problema muito famoso que ilustrou diversos livros e contribuiu para a divulgação de uma fantástica partida de xadrez.

A quinta partida do match Capablanca × Marshall em 1909 ficou famosa por diversos motivos, e não somente pela técnica demonstrada por Capablanca na fase final da partida.

Por muitos anos, diversos autores divulgaram que Marshall deixara passar a chance de vitória após a 44ª jogada de Capablanca (provavelmente reproduzindo o erro de uma coluna da revista The Chess Review de junho/1933, sem se dar ao trabalho de checar os lances originais da partida em outra fonte):

Diagrama original retirado da colune “Mistakes of the masters” de Lester W. Brand “The Chess Review” de junho/1933. Posição após 44 … Ba2.

Chernev aponta ainda que este mesmo diagrama (que contém um erro) foi citado em diversos livros e artigos, como The Chess Mind (Gerald Abrahams, 1951 ) e no mais recente The 10 Most Common Chess Mistakes … and how to avoid them! de Larry Evans (1998).

Diagrama nº 61 do livro “The Basis of Combination in Chess” (J. Du Mont, 1938) reproduzindo o erro de Brand.

Esta última referência, de Evans, é curiosa, pois ele próprio corrige a informação em seção de perguntas e respostas de Chess Life & Review de novembro/1974 (página 750):

Recorte da resposta de Larry Evans,
indicando que o correto era dama em b6 (QN6).

O que tornou essa posição (errada) famosa foi a suposta falha de Marshall em encontrar uma continuação ganhadora relativamente simples: 1. De8+ Rg5 2. f4+ com vitória, pois se 2 … Rg4 De2# ou 2 … Rf6 3.Dh8+ ganhando a dama.

Na verdade, como apontou Evans, a posição correta tem a dama branca na casa b6 (e não c6), e a linha vencedora acima simplesmente não existe para as brancas.

Segue a partida completa:

Certamente, Marshall, o homem homenageado com uma chuva de moedas de ouro, jamais deixaria uma chance como essa de derrotar seu histórico rival.

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Rubinstein, um lance, duas vitórias

A série sobre posições famosas demanda muitas pesquisas em livros, revistas antigas, fóruns de discussão, que trazem muitas descobertas interessantes, além das diversas sugestões de colegas enxadristas. Tais curiosidades, que talvez não estejam exatamente dentro da proposta da série, com frequência dão origem a uma postagem só para elas.

Num antigo livro com 50 partidas seletas, duas me impressionaram em especial. Em ambas, jogava de brancas o grande mestre Akiba Rubinstein e seus adversários eram (ou seriam) campeões mundiais: Lasker e Capablanca, respectivamente. Rubinstein ganhou dos dois usando uma mesma jogada, embora as posições sejam distintas! Seria um método secreto para vencer campeões do mundo?
Rubinstein nasceu na Polônia (então parte do Império Russo) e foi contemporâneo de Lasker, Capablanca, Alekhine, Tarrasch e Marshall, para falar apenas dos famosos cinco grandes mestres originais. A forte concorrência no período em que esteve no auge de sua força enxadrística pode ajudar a entender porque Rubinstein jamais foi campeão mundial. Outros fatores foram sua condição financeira desfavorecida e a eclosão da I Guerra Mundial, quando Rubinstein estava no ápice de sua forma.

Um match com Lasker estava pré-firmado para 1914, quando começou a guerra, e, depois dela, a penível condição econômica europeia impediu que Rubinstein conseguisse levantar os valores pedidos por Lasker como bolsa mínima para a disputa do título (o mesmo aconteceria depois, quando o campeão já era Capablanca).

Segundo os ratings históricos, Rubinstein esteve pelo menos o entre os quatro melhores do mundo no período entre 1905 e 1915 e foi provavelmente o mais forte enxadrista do mundo entre 1912 e 1914. Justamente neste período áureo foram jogadas as partidas contra Lasker e Capablanca, nas quais Rubinstein usa o mesmo lance para obter a vantagem.

Nas posições acima, as partidas se encontram em seu momento crítico. Contra Lasker, era primeiro confronto entre eles, e Rubinstein precisa encontrar uma forma de retomar a torre sem cair num final desfavorável. Contra Capablanca, também o primeiro confronto entre os dois, o grande mestre polonês preparou uma linha aguda de abertura e precisava achar o único lance que não só evitaria ficar mal de imediato, mas deixa as brancas com posição superior!

Na primeira posição, Rubinstein jogou 18. Dc1!, exatamente o mesmo lance (com outras ideias) que fez na segunda, 17. Dc1!!, obtendo em ambas as partidas vantagens de longo prazo que conseguiu converter em vitória algumas jogadas depois.

O xadrez está cheio de coincidências, mas, como vimos, nem todas as coincidências na vida de Rubinstein foram tão felizes como o ‘Dc1‘. O mestre sempre teve uma saude mental frágil e passou boa parte de seus últimos anos em instituições psiquiátricas, especialmente após a morte da esposa em 1954.

Esses traços da personalidade de Rubinstein chamaram a atenção do escritor russo Vladimir Nabokov, que se inspirou nele (como em outros jogadores do início do século XX) para moldar seu personagem principal no livro A Defesa Luzhin, que depois deu origem a um excelente filme homônimo.

Rubinstein pode não ter passado para a história como um campeão mundial, mas suas combinações terão sempre um lugar cativo nos tabuleiros e no imaginário de gerações e gerações de enxadristas. Na próxima vez que puder fazer o lance ‘Dc1‘, lembrarei do mestre e pensarei com cuidado, pode ser uma arma poderosa, principalmente se meu adversário for um Campeão do Mundo!

Um lance nada inocente

Lewitsky,S.M.  Marshall, F.J.
Breslau, 1912
Posição após 23. Tc5.
… o mais belo lance já jogado.” – Horowitz
Frank Marshall foi o melhor enxadrista dos Estados Unidos da América no início do século XX e desafiante pelo título mundial contra Emanuel Lasker em 1907. Um jogador de ataque, considerado um dos últimos do antigo estilo romântico, que na época já vinha perdendo espaço para o xadrez mais científico. O que talvez tenha ofuscado um pouco a brilhante carreira de Marshall tenha sido o fato de ser contemporâneo de Capablanca, Lasker e Rubinstein, mesmo assim, ainda foi capaz de vitórias isoladas contra todos estes três gigantes do tabuleiro. Stepan Lewitsky foi um dos mais fortes mestres russos do período pré-soviético e tem seu nome na teoria enxadrística com o Ataque Lewitsky (1. d4 d5 2. Bg5). Porém, a exemplo de Kieseritzky, é mais lembrado por ter sido derrotado nesta partida de desfecho brilhante, jogada no torneio de Breslau em 1912.

A posição acima mostra o ponto crítico da partida, quando Marshall tem sua Dama e uma de suas Torres atacadas e aparentemente deve ceder material ao adversário. Mas o mestre norte americano surpreendeu a todos com uma jogada que poucos são capazes de sequer imaginar. Um lance que já foi chamado de brilhante e paradoxal, um caso de realismo fantástico aplicado ao Xadrez!

A partir do diagrama, as negras jogaram 23. … Dg3!! (alguns analistas já atribuíram !!! para este lance). A dama não pode ser tomada pelos peões por causa de ameaças de mate, por exemplo, se 24. fxg3?? Ce2+ 25. Rh1 Txf1#, ou se 24. hxg3?? Ce2#. As brancas poderiam seguir com 24. Dxg3 Ce2+ 25. Rh1 Cxg3+ 26. Rg1 Ce2+ 27. Rh1 Tc3 mas ficariam com uma peça a menos. Em face de suas pobres opções, as brancas abandonaram sem tentar nenhuma das continuações comentadas, o que ajudou a eternizar a posição final.

Posição final (0-1)

Existe uma lenda(confirmada pelo próprio Marshall) de que alguns dos presentes no salão de jogos teriam jogado moedas de ouro sobre a mesa, tamanha a euforia causada pelo sacrifício proibido da Dama frente aos peões brancos.