Um lance nada inocente

Lewitsky,S.M.  Marshall, F.J.
Breslau, 1912
Posição após 23. Tc5.
… o mais belo lance já jogado.” – Horowitz
Frank Marshall foi o melhor enxadrista dos Estados Unidos da América no início do século XX e desafiante pelo título mundial contra Emanuel Lasker em 1907. Um jogador de ataque, considerado um dos últimos do antigo estilo romântico, que na época já vinha perdendo espaço para o xadrez mais científico. O que talvez tenha ofuscado um pouco a brilhante carreira de Marshall tenha sido o fato de ser contemporâneo de Capablanca, Lasker e Rubinstein, mesmo assim, ainda foi capaz de vitórias isoladas contra todos estes três gigantes do tabuleiro. Stepan Lewitsky foi um dos mais fortes mestres russos do período pré-soviético e tem seu nome na teoria enxadrística com o Ataque Lewitsky (1. d4 d5 2. Bg5). Porém, a exemplo de Kieseritzky, é mais lembrado por ter sido derrotado nesta partida de desfecho brilhante, jogada no torneio de Breslau em 1912.

A posição acima mostra o ponto crítico da partida, quando Marshall tem sua Dama e uma de suas Torres atacadas e aparentemente deve ceder material ao adversário. Mas o mestre norte americano surpreendeu a todos com uma jogada que poucos são capazes de sequer imaginar. Um lance que já foi chamado de brilhante e paradoxal, um caso de realismo fantástico aplicado ao Xadrez!

A partir do diagrama, as negras jogaram 23. … Dg3!! (alguns analistas já atribuíram !!! para este lance). A dama não pode ser tomada pelos peões por causa de ameaças de mate, por exemplo, se 24. fxg3?? Ce2+ 25. Rh1 Txf1#, ou se 24. hxg3?? Ce2#. As brancas poderiam seguir com 24. Dxg3 Ce2+ 25. Rh1 Cxg3+ 26. Rg1 Ce2+ 27. Rh1 Tc3 mas ficariam com uma peça a menos. Em face de suas pobres opções, as brancas abandonaram sem tentar nenhuma das continuações comentadas, o que ajudou a eternizar a posição final.

Posição final (0-1)

Existe uma lenda(confirmada pelo próprio Marshall) de que alguns dos presentes no salão de jogos teriam jogado moedas de ouro sobre a mesa, tamanha a euforia causada pelo sacrifício proibido da Dama frente aos peões brancos.

Três peões na sétima vão ao paraíso

Mac Donnel, A.  De la Bourdonnais, L.
Londres, 1834
Posição após 24. c6
Talvez o final mais brilhante de que se tem notícia”, (Enciclopédia Soviética de Xadrez).
No século XIX, Inglaterra e França clamavam ter os melhores jogadores de Xadrez do mundo. Em 1834, para tirar essa dúvida, foram reunidos os dois mestres que eram considerados os melhores enxadristas desses dois países para uma série de seis matches (!) e definir qual dos dois era o melhor 
jogador da Europa, quiçá do mundo. Alexander MacDonnel, enxadrista amador, irlandês radicado em Londres, e o enxadrista profissional Louis Charles Mahé de la Bourdonnais, francês, como se nota, teriam jogado um total de 88 partidas, das quais apenas 85 se conservaram. Sabe-se, porém, que o placar final foi preservado, com contagem em favor do francês (+45 – 30 = 13)1. Após este encontro, De la Bourdonnais desfrutou da reputação de Campeão do Mundo até sua morte, em 1840.

A posição acima é da 62ª partida da série (16ª do 4º match), as pretas  têm certa desvantagem material, compensada pela posição e mobilidade de seus peões centrais. Esta posição não é a mais famosa desta partida, mas é o ponto inicial da combinação cujo desfecho permanece até hoje no imaginário enxadrístico mundial.

A partir do diagrama acima, a partida continuou assim: 24. … fxe3! (ignorando a ameaça sobre o bispo de b7, que não pode ser capturado)25.Tc2 De3+ 26.Rh1 Bc8 27.Bd7 f2 28.Tf1 d3 29.Tc3 Bxd7 30.cxd7 e4 31.Dc8 Bd8 32.Dc4 De1 33.Tc1 d2 34.Dc5 Tg8 35.Td1 e3 36.Dc3 (e agora o arremate, que leva a uma famosa posição vencedora, com três peões colados na sétima fila, e incontáveis ameaças!)… Dxd1! 37.Txd1 e2
Posição final após 37. … e2 (0-1).
Uma posição realmente fantástica, com ares de composição artística, mas alcançada numa partida real no que hoje seria considerada uma disputa pelo título mundial! Os peões negros alinhados na sétima fila2 tornam inofensivas as poderosas peças pesadas brancas, que abandonaram sem esperar pelo xeque-mate.

1 Aqui, há fontes que indicam também +45 -27 = 13 (considerando apenas as partidas que se conservaram) e +44 -30 = 14
2 Teria sido esta posição final a inspiração para o nome do filme A classe operária vai ao paraíso? 

Série ‘Posições Famosas do Xadrez’

Posições publicadas até o momento. Sugira a próxima!

Alguns já devem ter percebido que, ultimamente, um certo padrão de postagens vem aparecendo aqui no LQI, sempre sob o marcador ‘Posições Famosas do Xadrez‘.

A ideia é apresentar ao jogador iniciante, ou ao mero curioso sobre o jogo, aquelas posições de importância histórica, seja pela beleza dos lances, da combinação arrematadora, da partida em que ela apareceu ter sido decisiva num campeonato mundial, por exemplo, e assim por diante. Motivos não faltam para tornar uma posição famosa. E isso gera uma dificuldade: sob que ótica julgar a fama de uma dada posição?

Até agora venho seguindo o caminho mais fácil, escolhendo algumas ‘unanimidades’, como as posições-chave da ‘Partida Imortal‘ e da ‘Sempreviva‘, ou da histórica vitória de Botvinnik sobre Capablanca em 1938. Aliás, me parece que as derrotas de Capablanca, de tão raras e tão comentadas, são candidatas naturais para este projeto e, das cinco publicadas até agora, já temos duas na qual o grande cubano Campeão do Mundo teve que inclinar seu Rei! Não vão pensar que é falta de admiração por ele, mas uma incomum oportunidade de homenagear e enaltecer mostrando, também, as derrotas!

Não existe ordem entre as posições, ainda que, inicialmente, eu tenha tentado a pesquisa com partidas mais antigas, que há mais tempo adquiriram sua fama e das quais é mais fácil encontrar referências. Não impede que uma partida recente apareça numa das próximas postagens.

E por que posições e não a partida completa? Bem, isso pode ser explicado de várias formas, a primeira é o tamanho de uma postagem, que não convém ser muito longa, pois dificilmente será lida até o final. Além disso, meu parco conhecimento do jogo não me permitiria jamais publicar partidas comentadas de mestres, tampouco vejo graça em copiar dos livros ou usar computadores. Em suma, o formato me parece ideal para o blog. Sempre deixo links para aqueles que quiserem ver a partida completa e enriquecer os conhecimentos.

Termino convidando os leitores do LQI para deixar comentários com posições que julguem interessantes para constar desta série. Obrigado!

Postagens já publicadas:

1938: um ponto de inflexão nos tabuleiros

Botivinnik,M. Capablanca, J.R.
Rotterdan, 1938
… uma das mais famosas combinações de todos os tempos” – Nunn
E, na 11ª rodada, Botvinnik jogou o que foi em suma ‘a partida de sua vida’ contra Capablanca. ” – Kasparov
Algumas vezes conseguimos identificar claramente os pontos de inflexão da história, esta partidafoi uma dessas ocasiões. Em 1938, os oito maiores mestres de Xadrez do mundo, inclusive Alekhine, o campeão mundial, tomaram parte num torneio que ficou conhecido como um dos mais fortes até hoje realizados. Torneio A.V.R.O. (sigla da empresa patrocinadora do certame), disputado em diferentes cidades da Holanda. Capablanca, então com 50 anos, recém-casado pela segunda vez, enfrentava o jovem Botvinnik, que viria a se tornar, anos depois, o primeiro campeão mundial soviético. Esta partida foi um dos alicerces da reputação de Botvinnik como patriarca do que veio a ser a Escola Soviética de Xadrez, que produziu (de uma forma ou doutra) todos os campeões mundiais de 1948 a 2005, exceto Fischer (americano, campeão de 1972 a 1975).

Capablanca comete uma (rara) falha na avaliação de sua posição, acreditando ser seguro o ganho do peão da coluna ‘a’. Para tanto, o grande cubano deixou um de seus cavalos fora de jogo.

Enquanto isso, Botvinnik fortalecia sua posição no centro e no flanco do rei. Para arrematar sua vitória, o mestre soviético encontrou uma combinação belíssima, que tornou esta partida obrigatória em quase todas as antologias de partidas que se publicaram posteriormente.

A partir do diagrama, a continuação é 30. Ba3!! (deslocando a dama negra da defesa do cavalo em f6) 30. … Dxa3 31. Ch5! (teriam gritado este lance da plateia antes que fosse jogado, tamanha a empolgação dos espectadores com a combinação, mas claro que Botvinnik previu isso muito antes do lance 30) 31. … gxh5 32. Dg5+ Rf8 33. Dxf6 Rg8 34. e7 (tudo agora depende se o rei branco vai encontrar abrigo para os xeques de Capablanca, ainda esperançoso de empatar) 34. … Dc1+ 35. Rf2 Dc2+ 36. Rf3 Dd3+ 37. Rh4 De4+ 38. Rxh5 De2+ 39. Rh4 De4+ 40. g4 De1+ 41. Rh5 eas negras abandonam.

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Uma miraculosa concatenação de circunstâncias

Adams, E. Torre, C.
New Orleans, 1920
… a truly miraculous concatenation of circumstances” – Tartakower
A mais bela partida que eu joguei” – Torre
Em 1920, o jovem talento mexicano, Carlos Torre Repetto, era patrocinado por Edwin Ziegler Adams, e esta posição advém, provavelmente, duma partida de treinamento entre os dois.

Torre (1905 – 1978) foi o primeiro mexicano a despontar no cenário internacional, 5º colocado no forte Torneio de Moscou em 1925 (vencendo Lasker numa partida também histórica), mas, já no ano seguinte, abandona as competições após sofrer um colapso nervoso causado por problemas pessoais e profissionais, jamais retomando a prática do xadrez magistral. Em 1977, a FIDE outorgou-lhe o título de Grande Mestre Internacional por seus resultados nos anos 1920 (quando se estima que seu desempenho o teria classificado, então, entre os dez melhores do mundo). Já Adams (1885 – 1944), além de mentor de Torre e ser um jogador mediano, passou à história do jogo somente por esta partida.

A posição acima só veio ao conhecimento público 5 anos depois de jogada, quando foi publicada no American Chess Bulletin, com notas do já forte mestre Carlos Torre. As notas de Torre, aliás, lançam certas dúvidas sobre os lances finais da partida, se realmente ocorreram ou se, após as negras abandonarem a partida no 15º lance, o magnífico desfecho teria sido parte da análise post mortem. Ou teria, ainda, sido uma homenagem do pupilo ao seu antigo amigo e benfeitor, atribuindo-lhe os méritos da brilhante sequência de sacrifícios de dama que decidem a partida?

A partir do diagrama, a continuação é 18. Dg4!! (a dama não pode ser tomada por causa do mate na oitava fila, se 18. … Dxg4?? 19. Txe8+ Txe8 20. Txe8#)18. … Db5 19. Dc4! Dd7 20. Dc7! Db5! (uma pequena armadilha armada pelo lado negro, se 21. Dxb7?? Dxe2! e agora as negras ganham)21. a4! Dxa4 22. Te4!! (provavelmente o lance mais difícil da combinação)Db5 23. Dxb7 perdendo a dama ou levando mate, as negras abandonam.