As trigêmeas de Gotemburgo

E. Geller × O. Panno
P. Keres × M. Najdorf
B. Spassky × H. Pilnik
(Gotemburgo, 1955)
Posição após 10. … Cfd7

Esta posição tornou-se famosa não por uma partida, mas por três! Todas jogadas simultaneamente no mesmo torneio (o Interzonal de Gottemburg, em 1955), na mesma rodada, sendo todos os três jogadores das peças brancas soviéticos e os três jogadores das peças pretas argentinos! Tratava-se, então, de um duelo inusitado entre as duas mais fortes nações enxadristas na época (União Soviética e Argentina haviam conquistado, respectivamente, Ouro e Prata na Olimpíada de Xadrez em 1954) em um torneio individual. Dos 6 jogadores envolvidos nas 3 partidas, apenas Pilnik jamais foi campeão mundial ou candidato ao título.

Um dos argentinos era Miguel Najdorf (Polônia/Argentina, 1910 — 1997, polonês de nascimento, criador da famosa variante da Defesa Siciliana que leva seu nome, justamente a defesa escolhida pelos jogadores de pretas nas três partidas acima. Acontece que os argentinos haviam preparado em segredo um novo lance (9.… g5) com o qual contavam surpreender aos soviéticos. Uma tarefa nada fácil!

Geller, jogador conhecido pelo conhecimento enciclopédico de xadrez, foi o primeiro a descobrir a refutação para a novidade portenha, após meia hora de reflexão, seguido depois por Spassky e Keres, que precisaram pensar por cerca de uma hora.

O curioso é que Najdorf e Pilnik (alemão naturalizado argentino) foram, alegremente, acompanhar a partida de seu companheiro Panno, depois que perceberam que os soviéticos todos haviam entrado na variante preparada, enquanto seus respectivos adversários checavam com análises, cada um no seu tabuleiro, se o lance de Geller era mesmo correto. Neste momento, segundo nos conta o próprio Efim Petrovich, Najdorf, teria cochichado para ele: “Sua partida está perdida, nós já analisamos tudo isso!”

Após as três próximas jogadas de Geller, porém, os dois voltaram para suas mesas, desanimados. O grande teórico soviético havia descoberto a falha na análise dos argentinos, e seus compatriotas não tardariam a fazer os mesmos lances.

A partir da posição acima, seguiu em todos os tabuleiros: 11.C×e6! f×e6 12.Dh5+ Rf8 até aqui os argentinos estavam confiantes de sua análise caseira, mas veio a refutação em dois tempos. 13.Bb5! Ce5 14.Bg3! Os argentinos tinham previsto 14. 0-0+ Rg8 15. Bg3 h×g5 com boa posição, mas a sútil alteração de ordem das jogadas deixa as pretas sem esperanças. Najdorf e Pilnik se desviaram da partida de Geller e Panno no 13º lance, com 13. … Rg7.

A variante proposta pelo trio argentino só seria ressuscitada três anos depois, quando Fischer empregou contra Gligoric a nova jogada 13.… Th7!, conseguindo empatar a partida para as pretas.

Morphy: o primeiro prodígio norte-americano.

L. Paulsen x P. Morphy
New York, 1857
Posição após 17. Da6 …
No século XIX ,o xadrez como conhecemos hoje era basicamente uma prática europeia. Naquele continente estavam os mais renomados mestres, inclusive aqueles, como Anderssen, que ostentavam o título não oficial de ‘Campeão do Mundo’. Porém, o xadrez se praticava já em outras áreas do planeta.

Em 1857 se jogou o primeiro Campeonato dos EUA, que consagrou Paul Morphy, um jovem ex-menino prodígio que, já bacharel em Direito mas muito jovem para advogar, tirou um ano sabático para dedicar-se mais seriamente ao xadrez. O adversário de Morphy nesta partida, o outro finalista do torneio, Louis Paulsen, foi o único a vencer uma partida contra Morphy em todo o evento e viria a ser depois um dos melhores jogadores do mundo entre 1860 e 1870 e passou para a posteridade como o criador de inúmeros sistemas de aberturas, inclusive a variante Paulsen da Defesa Siciliana. Esta partida não teve em Paulsen o efeito avassalador observado em outros derrotados de forma brilhante e marcante. Ele continuou jogando bem e o auge da sua carreira ainda viria alguns anos depois, quando empatou um match pelo campeonato mundial com Anderssen em 1862.

A partida em questão, sobretudo o desfecho a partir do diagrama mostrado acima, deu fama mundial a Morphy, pois foi publicada em periódicos europeus. Foi esta partida o estopim para a turnê de Morphy pela Europa entre 1858e 1859. Ao retornar de sua bem sucedida viagem (da qual o único ponto negativo foi não ter conseguido enfrentar Stauton, então campeão europeu, mas que recusou todos os desafios de Morphy), ele abandonou o xadrez de competição (como faria mais de um século depois outro gênio norte-americano) e nunca conseguiu ser visto com seriedade no meio legal, quando tentou firmar profissão. Morreu precocemente aos 47 anos de idade.

A partir da posição acima, as negras demonstram a fragilidade da posição branca (que tem praticamente 3 peças isoladas da ação principal) com um fantástico sacrifício de Dama, como se diz em Tartakower e Du Mont, “um dos mais famosos sacrifícios de Dama da literatura do jogo”:

17… Df3!! 18. gf3 Tg6+ 19. Rh1 Bh3 20. Td1? (Com jogo perfeito, as pretas tem mate em 6 jogadas a partir de agora. Seria bem melhor 20. Dd3, mas depois de 20. … f5 21. Td1 Bg2+ 22. Rg1 Bf3+ 23. Rf1 Bd1 24. Dc4+ Rh8 as pretas tem vantagem decisiva) Bg2+ 21. Rg1 Bf3+ 22. Rf1 Bg2+ (Vários mestres que analisaram a partida afirmam que 22…Tg2! seria mais rápido, pois seguiria por exemplo com 23. Dd3 Tf2+ 24. Rg1 Tg2+ 25. Rf1 Tg1#. Em Tartakower  e Du Mont se fala algo interessante em defesa de Morphy: provavelmente ele já tinha visto toda a sequência vencedora mais longa e jogou no automático) 23. Rg1 Bh3+ (Melhor 23. … Be4+ 24. Rf1 Bf5!25. De2 forçado … Bh3+ 26. Re1 Tg1# ) 24. Rh1 Bf2 25. Df1 (A entrega da Dama é forçada para postergar o mate.) 25… Bf1 26. Tf1 Te2 27. Ta1 Th6 28. d4 Be3e as brancas abandonam 0-1.

Steinitz: uma combinação imortal

W. Steinitz x C. von Bardeleben
Hastings, 1895
Posição após 21. … Re8
Em 1895, o mestre austríaco Wilhelm Steinitz já não era mais o Campeão do Mundo (após 8 anos de reinado, havia perdido o título para Emanuel Lasker no ano anterior), mas, como frequentemente acontece aos recém ex-campeões, o brilho de seu jogo pareceu rejuvesnecer após a derrota para Lasker. Na décima rodada do Torneio de Hastings daquele ano, Steinitz enfrentou Curt von Bardeleben, que vinha liderando o torneio. Bardeleben foi um mestre alemão que vivia somente de xadrez e (segundo Edward Lasker) da venda do seu nome nobre para moças com quem contraia matrimônio e depois se divorciava.

Após ser derrotado por Steinitz, assim como outros mestres do passado que sofreram derrotas espetaculares, von Bardeleben experimentou uma decadência enxadrística e pessoal que acabou levando-o ao suicídio em 1924, pulando de uma janela. Este episódio teria inspirado Nabokov em seu romance “A Defesa Luzhin“, na qual caracterizou um mestre de xadrez que sofria de transtornos mentais.

A combinação de Steinitz entrou para a história como uma das mais brilhantes do xadrez. É curioso que já no final de sua exitosa carreira enxadrística ele tenha produzido sua partida mais famosa.
A posição acima mostra o momento chave da partida, em que Steinitz capitaliza a vantagem que obteve ao privar o Rei adversário do roque, deixando-o no centro do tabuleiro. A partida seguiu com 22. Te7!! … é interessante ver que todas as peças brancas estão en prise sendo impossível a captura de qualquer uma delas sob pena de perder a partida 22. … Rf8 (se 22. … Re7 23. Db4+ Re8 24. Te1+ Rd8 25. Ce6+ com perda forçada da Dama; se 22. … De7 23. Tc8+ Tc8 24. Dc8 e as brancas tem uma peça de vantagem) com o lance do texto, aparece o tema da “torre carrapato” que se oferece insistentemente mas não pode ser capturada 23. Tf7+ Rg8 24. Tg7+. Neste momento, von Bardeleben teria se retirado do recinto sem sequer abandonar formalmente a partida e por muito pouco não abandonou também o torneio. Poderia ter seguido ainda alguns lances com 24. … Rh8 25. Th7+ Rg8 26. Tg7+ e agora as negras precisariam decidir entre uma pesada perda de material com 26. … Rf8 27. Ch7+ Rg7 28. Dd7+ ou um mate em 9 lances com 26. … Rh8 27. Dh4+ Rg7 28. Dh7+ Rf8 29. Dh8+ Re7 30. Dg7+ Re8 31. Dg8+ Re7 32. Df7+ Rd8 33. Df8+ De8 34. Cf7+ Rd7 35. Dd6# 1-0.

Quando (e como) Fischer se revelou Fischer

D. Byrne x R.J. Fischer
New York, 1956
Posição após 17. Rf1

Meninos prodígio sempre chamam bastante atenção, seja na música, matemática ou xadrez. Em 1956, Robert James (Bobby) Fischer ainda era somente um garoto de 13 anos de idade quando começou a ser conhecido mundo afora por causa do seu talento enxadrístico. Donald Byrne foi campeão norte-americano em 1953 e mestre internacional de xadrez. Quando se sentou para enfrentar Fischer, o campeão juvenil norte-americano em 1956, Byrne dificilmente poderia imaginar a dimensão que aquela partida tomaria.

A posição acima está prestes a revelar o ápice duma brilhante série de jogadas que se iniciou com 11. … Ca4!, a partir da qual já se escreveu: “As próximas 7 jogadas geraram uma das mais fantásticas sequências já registradas em toda a história do xadrez.” (J. Nunn e W.H. Cozens, em The king hunt, 1996).


A partir do diagrama, o ponto alto é a entrega da Dama com 17. … Be6!!. A Dama é uma peça tão poderosa no xadrez, que é sempre interessante ver quando ela é sacrificada. Principalmente quando a vitória do bando que oferta o sacrifício só vem muitos lances depois. Neste caso, Fischer trocou sua Dama por 2 Bispos, 1 Torre e 1 Peão, o que é materialmente suficiente para vencer, mas exige uma técnica apurada.

A mágica cena dum menino vencendo um experimentado mestre com tamanha técnica e visão, aliada à beleza dos lances, fez com que esta partida fosse rapidamente aclamada como ‘A partida do século’. Curiosamente, ela não aparece no famoso livro My 60 memorable games, a obra prima escrita por Fischer em 1969.

Uma linha interessante resultaria a partir do sacrifício da Dama, caso fosse recusado, pois poderia surgir um belo mate de Philidor em caso de 18. Bxe6? Db5 19. Bc4 Dxc4+ 20. Rg1 Ce2 21. Rf1 Cg3+ 22. Rg1 Df1+ 23. Txf1 Ce2#.

Toda a combinação que começa no 11º lance negro envolve o sacrifício de um cavalo em a4 (recusado), o sacrifício da qualidade em f8 (recusado) e, enfim, o sacrifício da Dama em b6 que, pela linha mostrada acima, o Branco foi forçado a aceitar.

A partida continuou por mais 24 lances. O menino Fischer não deu mais nenhuma chance. O mestre Byrne, talvez intuindo que naquele momento entrava para a história do xadrez (infelizmente da mesma forma que Kieseritzky), não exerceu seu direito de abandonar a partida e permitiu que ela seguisse até o mate com 41. … Tc2#.
Posição final após 41. … Tc2#.

Bronstein, o mais humano dos grandes mestres

L. Pachman x D. Bronstein
Praga, 1946
Posição após 20. Td2.

“Uma partida que abriu uma nova página no desenvolvimento do pensamento enxadrístico” G. Kasparov


David Bronstein foi o mais humano dos grandes mestres, sem dúvida. Suas análises e ideias sobre o jogo vão além da busca árida por vitórias, mas pela beleza, pela alegria de explorar a vastidão das possibilidades do xadrez. Talvez tenha sido esse seu lado demasiado humano que o fez empatar o match pelo campeonato do mundo contra Botvinnik em 1951 – permanecendo, assim o título com este último. Tigran Petrossian resumiu assim a importância de Bronstein para o xadrez: “Os mais jovens podem pensar que o xadrez moderno começou com coisas como o Informador, mas os jogadores da minha geração sabem que começou com Bronstein”. A prova de que Petrossian não exagerou é que Bronstein é o autor do que talvez seja o mais influente livro sobre o jogo no século XX: Zurich International Chess Tournament, 1953.

Ludek Pachman foi um dos grandes mestres da elite mundial nos anos 50 e 60 (sendo inclusive um dos poucos a ter escore igual contra Bobby Fischer, +2 -2 = 4). Ficou conhecido para a grande maioria dos enxadristas como o autor de obras primas como Modern Chess Strategy.

A posição acima é uma das mais famosas de Bronstein e aconteceu durante o primeiro confronto entre estes dois grandes mestres. O resultado final foi tão avassalador para Pachman que ele jamais conseguiu derrotar Bronstein no restante de seus encontros ao longo dos anos (+0 -5 = 6, o último em 1994)!

Bronstein mostra didaticamente como coordenar a ação concomitante das peças em determinadas casas do tabuleiro (a1, d4 e g3 principalmente), mesmo quando aparentemente as peças estão obstruídas por peças do adversário. O ataque se desenvolve nos dois lados do tabuleiro, ao mesmo tempo, com um só objetivo: matar o Rei branco!

A partida continuou assim: 20.… T×a1! Bronstein explica: “A única esperança branca repousa em seu Bispo de a1. Para demolir os cimentos da posição branca, as negras deveriam tomar o dito bispo com sua torre.” 21.T×a1 B×d4 22.T×d4 C×b3 23.T×d6 D×f2 24.Ta2 D×g3 25.Rh1 D×c3 26.Ta3 B×h3 27.T×b3 B×g2 28.R×g2 D×c4 29.Td4 De6 30.T×b7 Ta8 31.De2 h3+ e as brancas abandonam.

Posição final, 0-1.