O supersticioso, se morrer, morre de velho

Josué era um ávido leitor de tudo quanto era conteúdo de xadrez. Gostava bastante de textos que combinassem análises de partidas com uma boa dose de lirismo.  Passaram por suas mãos e vistas livros como El Ajedrez de Torneo (que infelizmente precisou se esforçar para ler em espanhol pela ausência de uma tradução nacional), seu autor, David Bronstein, não se limitava a lançar variantes secas, mas sempre trazia algo além, em prosa. O livro Piense como un gran maestro, do Kotov, também cumpria bem esse papel, embora ali não se analisassem partidas completas.

A alegria de Josué foi grande quando ele encontrou num sebo o livro de crônicas de Hélder Câmara, intitulado Diagonais: crônicas de xadrez. Se havia um estilo mais agradável aos gostos de Josué era aquele usado nos textos daquele livro. O autor era um mestre com os trebelhos e com as palavras! Entendia tanto de tática e estratégia, quanto de nuances da vida humana. Ao correr os olhos sobre o índice, Josué logo percebeu que o mestre Câmara também tinha uma predileção pelo grande “Mago de Riga”, o ex-campeão do mundo Mikhail Tal.

Ao ler uma das crônicas, Josué foi literalmente às lágrimas, enlevado pelo simbolismo da partida, a derradeira do Mago, jogada poucos dias antes de sua morte. O que mais impressionou Josué foi o fato de que o último lance da última partida de Tal consistisse em retornar com o rei até sua casa inicial – rei um do rei – levando o adversário a abandonar a luta. “Homem, és pó e ao pó voltarás” escreveu Câmara ao lembrar o texto bíblico, e arrematou: “assim (…), Tal despedia-se da vida do xadrez (e …) do xadrez da vida”.

Profundamente impressionado, Josué passou algumas semanas sem tocar o tabuleiro, apenas lia e releia a crônica, fantasiando se Tal havia feito cada uma daquelas jogadas de sua partida final sabendo que ali acabaria tudo.

A deusa Caíssa gostava de fazer tratos com alguns homens, Josué sabia, e não duvidava que talvez até houvesse um céu só para enxadristas, onde deveria estar Bobby Fischer, que fora levado após somente 64 anos de vida, um ano completo para cada casa do tabuleiro. E, agora, Tal selar a sua vida com o enigmático retorno do monarca até a casa um do rei… Era muito estranho.

Com o tempo, porém, ele foi retomando sua rotina normal, a crônica e a partida continuavam com ele, mas tornara-se mais fácil pensar que tais mistérios não passavam de falsas relações que a fértil imaginação humana quer impor ao Acaso.

Josué já não era tão jovem, desde que se aposentara gostava de participar de todos os torneios que aconteciam em sua cidade, talvez como forma de compensar os anos que passara afastado em decorrência de afazeres profissionais e familiares. Agora, sempre que possível, estava em frente a um tabuleiro.

Meses após ler a crônica, momentaneamente esquecido dela, Josué jogava com as peças pretas uma partida de torneio e tinha diante de si uma posição vencedora, com xeque-mate a descoberto. Bastaria fazer um lance: rei um do rei – retornar seu rei para a casa inicial. O adversário estava pálido, certamente rezando para que Josué não visse o mate, mas era uma jogada muito fácil. Além do mais, qualquer outra jogada daria chance às brancas de igualar a partida. Com um sorriso retido a muito custo, Josué esticou a mão até seu rei e o segurou entre o polegar e o indicador, mas algo o interrompeu.

O adversário pensou que fora a Providência, porém era uma terrível dúvida que acometera Josué. E se ele também tivesse o mesmo destino de Tal? E se a quantidade de jogadas de sua vida estivesse determinada para se completar naquele dia, após o retorno do rei? “Homem és pó…”, em vez de lances, os versículos rondavam sua mente.

Não, não havia qualquer lógica. Que bobagem. E voltou a imprimir força à mão estática que segurava o rei. Lembrou-se, então, que seu adversário se chamava Miguel, e parou novamente.

Tal era Miguel também!

Estava com 64 anos, ainda queria tanto viver e jogar… Se houvesse um céu para enxadristas, certamente ainda não estava pronto para lá. Moveu o rei, já que havia tocado aquela peça, porém para a casa dois do bispo – xeque, mas não mate, permitindo alívio do monarca inimigo. As brancas acabaram vencendo, para alegria de Miguel, embora fosse Josué quem parecesse aliviado.

Ainda hoje, ele joga torneios pela cidade. A idade avança aos poucos, como peões no tabuleiro. Quem observar de perto suas partidas perceberá rapidamente seu segredo: Josué jamais retorna com seu rei até a casa inicial! Nem mesmo para dar (ou escapar de um) xeque-mate.

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Desafio aos leitores: que tal compor uma posição plausível – uma posição problema – para o arremate possível na partida entre Miguel e Josué, conforme narrado no texto? Os requisitos estão todos lá. Envie o diagrama ou o código FEN para rewbenio@lancesqi.com.br, publicarei uma coletânea dos problemas recebidos, devidamente identificados com seus autores.

O Xadrez na Era Supervisonada

O xadrez mudou muito após o pleno desenvolvimento de computadores capazes de vencer os melhores jogadores do mundo. A partir dos anos 1980, as máquinas começaram timidamente a vencer grandes mestres, depois apareceu uma ou outra vitória isolada contra o campeão do mundo, até a definitiva derrota em 1997, quando Garry Kasparov inclinou seu rei na sexta partida do match contra Deep Blue.

Desde então, a questão não é mais se o homem pode bater a máquina, mas sim quão bem poderia jogar a máquina, e como ela ajudaria o homem a compreender melhor este jogo milenar que nos tem fascinado por tantos séculos. Foi o fim da ‘era não supervisionada” do xadrez.

Por muitos anos, nós humanos jogamos um xadrez misterioso, instigante. Não havia uma “resposta certa” sobre as mais variadas posições, especialmente alguns finais de partida. Aberturas precisavam ser analisadas exaustivamente em sessões de treinamento que duravam dias. Enganos eram frequentes, por várias vezes mestres prepararam em casa surpresas de abertura que foram simplesmente refutadas no tabuleiro, no calor da partida. Por isso, podemos chamar este tempo de era não supervisionada do xadrez.

Foi a época de Fischer, cuja formação como jogador foi inteiramente baseada em livros, revistas especializadas, pura prática e aconselhamento com outros grandes mestres (enquanto pôde encontrar jogadores no ocidente que ainda podiam lhe ensinar algo sobre o jogo). As comunicações ainda não estavam tão bem desenvolvidas, e as partidas dos adversários soviéticos e europeus chegavam com dificuldade, coletadas por amigos e colaboradores ao redor do mundo. Quando lhe ocorria uma ideia nova, ele não podia pensar “deixa eu saber aqui neste livro, ou com este grande mestre superior se esta jogada serve”. Não, ele mesmo respirava fundo, se colocava no outro lado do tabuleiro e ia atrás dos recursos possíveis para as peças contrárias.

Contra Fischer, e contra todo o resto do Mundo, havia a forte Escola Soviética de xadrez, detentora de todos os campeões mundias após 1948 (exceto Fischer). Era uma estrutura muito bem azeitada para formação serial talentos que, uma vez na elite, eram forçados a cooperar uns com os outros para o crescimento do xadrez soviético como um todo. Apesar de ainda não existir uma “resposta certa” para as questões do jogo, sempre era possível contar com a opinião de um ex-campeão do mundo, como Botvinnik ou Tal, senão lançar mão do enorme arsenal teórico disponível em língua russa, bem guardadas pelos melhores grandes mestres do mundo. Era o que mais se aproximava do que temos hoje, quando praticamente alcançamos a ‘era supervisionada’ do jogo.

A era supervisionada é muito diferente. Para começar, antes mesmo de ser desenvolvido o poder de cálculo de variantes e avaliação de posições no tabuleiro, o simples fato de os computadores terem possibilitado a criação de bases digitais gigantes de partidas já foi uma revolução. Isso já facilitou enormemente o acesso à teoria do jogo, construída ao longo de pelo menos dois séculos de partidas entre mestres preservadas. Mas não foi só isso.

Os algoritmos de xadrez ainda estão em plena adolescência, e estamos longe de ter a ‘solução’ do jogo, como já aconteceu ao primo distante jogo de Damas. Apesar disso, os computadores já estão muito próximos de fornecer a ‘resposta certa’ em cada posição possível. Há momentos em que eles eles calculam tão bem, produzem lances tão belos, que dão a impressão de que estão a pensar!

Ao acompanhar os comentários de grandes mestres que dão cobertura às partidas do match pelo Campeonato Mundial entre Magnus Carlsen e o desafiante Sergey Karjakin (ambos crias da época computacional do xadrez), é notório como o computador fornece os lances mais fortes, sugere ideias por vezes brilhantes que não são acessíveis à mente humana no espaço de tempo limitado de uma partida de torneio. Tampouco ocorrem ao comentarista que não tem pressão nem limitação de tempo para suas elucubrações. Aliás, os dois maiores trunfos do computador são justamente o tempo de resposta (segundos) e a profundidade de cálculo, que pode chegar a dezenas de jogadas à frente, enquanto a média alcançada por grandes mestres da elite é de “somente” cinco a dez jogadas.

Nesse momento, porém surge um incômodo. O comentarista  faz uma análise, diz sua ideia sobre uma determinada posição de partida (o que antes seria tomado como uma verdade), e o jogador médio que está acompanhando sente o ímpeto de “checar” com seu aplicativo de análises se o grande mestre está mesmo certo. É uma grande inversão de valores que pode trazer uma ilusória sensação de entendimento, já que tanto o computador quanto o grande mestre têm uma base sólida para lançar uma jogada, mesmo sem ser a melhor, mas o amador que segue as avaliações do computador sem questionar criticamente é como a casa construída sobre a areia. Há muitos perigos nessa crença cega.

O computador ainda não “compreende” tão bem o jogo, apesar dos avanços técnicos que permitem transformar em objetivos parâmetros numéricos os conceitos humanos para avaliar o jogo: quantidade, qualidade e mobilidade de peças, segurança do rei, controle de espaço, estrutura de peões etc. Um exemplo foi visto na quarta partida do match Carlsen x Karjakin, quando o russo (que se defendia em posição inferior) organizou sua peças num tipo de fortaleza e impossibilitou qualquer avanço do exército inimigo, enquanto o computador continuava a fornecer avaliações favoráreis a Carlsen, numa posição claramente igualada.

Karjiakin x Carlsen, NY 2016 WCC m4. Posição após 94. Rf2 (empate).
Isso nos ajuda a recolocar o boi na frente do carro, lembrar que são os homens e suas ideias maravilhosas de xadrez e de computação que tornaram possível a evolução que vemos hoje. Não esqueçamos que por muitos anos os esforços foram para fazer o computador jogar como um humano, e não convém agora querer que as pessoas joguem como um computador. Se um dia as pessoas não forem mais capazes de julgar o que diz um cálculo frio da máquina, quem estará trabalhando para quem?

Uma vez, o ex-campeâo mundial Mikhail Tal estava para jogar uma exibição de partidas simultâneas contra vários jovens talentos soviéticos e confidenciou a um colega temer as agudas preparações de abertura dos jovens, já que ele próprio não estava mais a par das últimas novidades, era final da década de 1970. O colega tranquilizou o campeão: “não se preocupe, quando acabar a teoria que memorizaram, então serão apenas eles mesmos jogando com as próprias ideias”. Tal venceu a maior parte das partidas. Será que a legião de jogadores que busca somente assimilar as agudas descobertas computacionais não estaria somente repetindo o que fizeram os jovens que enfrentaram Tal? O que acontecerá quando tiverem que jogar com suas próprias ideias? Haverá alguma?

A era supervisionada pode matar o xadrez? Ela está ainda no começo, mas seus efeitos já são notórios e crescentes. O risco é que no lugar da evolução do conhecimento enxadrístico, ela traga uma visão dogmática e superficial (que era um temor de Fischer, quando percebeu o peso das preparações de abertura em sua época). Podemos nos precaver, há uma coisa que está em nosso poder: desligar um pouco a máquina e pensar com nossos próprios meios. Afinal, o melhor computador já criado está dentro do crânio de cada um de nós.

O Xadrez em Serena


O livro Serena (Ian McEwan, 2012) traz como protagonista uma moça que ” … era matemática, ex-enxadrista e (…) que precisava de consolo”.

O xadrez é citado apenas poucas vezes, quando, por exemplo, a narradora relembra seus tempos como capitã da equipe de xadrez de sua escola.

Certamente o livro não seria assunto deste blog não fosse por outa passagem, talvez a última a mencionar o xadrez, quando Serena está sendo entrevistada para uma vaga burocrática no serviço secreto britânico:

“… apliquei ao meu autorretrato uma demãozinha de enxadrismo, sem mencionar que não jogava havia três anos. Ele me perguntou se eu conhecia o final da partida entre Zilber e Tal em 1958. Eu não conhecia, mas podia muito bem falar da famosa posição de Saavedra.”

Assim como Serena, eu não conhecia a partida de Tal, mas lembrava de já ter visto a posição de Saavedra. Quando li Serena, eu já havia iniciado a série sobre posições famosas e logo achei que poderia ser uma boa candidata. Fui atrás de conhecer a história da partida e atestar a fama da posição (tinha que ser famosa, para aparecer assim, nominalmente, numa obra literária). Infelizmente, nos dois livros de Tal que consultei não se menciona a partida, e na internet há pouca coisa. 

A referência mais esclarecedora foi no site chess.com, onde há uma página com a posição e fala-se que é oriunda da “clássica partida” entre Zilber e Tal em 1958. Em seguida, pede-se ao leitor que encontre a ideia vencedora. Segue a posição mostrada no chess.com:
Zilber – Tal, 1958
Posição após 42. … Rg4.
Não vou me arriscar a dizer que a posição acima é que confere fama à partida, ou se é este o final a que se referiu o autor, mas foi o melhor que pude apurar. Outra fonte de informação seriam os comentários à partida que alguns internautas fazem no site chessgames.com. Mas lá não houve grande ajuda.

Um dos poucos comentários diz que Zilber foi caracterizado no filme Lances Inocentes, sendo o senhor que colocou uma placa numa mesa de xadrez no Washington Square Park dizendo que venceu Tal em 1953 e cobrando 5 dólares por uma foto ou uma partida rápida:

Cena de Lances Inocentes (1993)
Porém, no chessgames.com não consta nenhuma vitória de Zilber contra Tal em 1953 (houve duas vitórias, uma em 1952 e outra em 1958 – esta que foi citada em Serena). Por outro lado, é praticamente certo que Zilber era frequentador das mesas de xadrez do Washington Square Park na década de 1980, e provavelmente, no filme, apenas houve erro da data da vitória.

A partir do diagrama acima, Zilber venceu Tal com as seguintes jogadas: 43. Te7 Rf5 44. Tf7 Td6 45. Bc5 Tf6 46. Tf6 Rf6 47. Rf3 Rf5 48. Bf8 Rg6 49. Rg4 h5 50. Rf3 Rf5 51. Be7 g4 52. Re3 Re6 53. Bd8 Re5 54. Bh4 1 – 0.

Para completar, a posição de Saavedra (como Ruy Lopez, também um padre ) é um belo estudo no qual Rei e Peão vencem Rei e Torre:

Estudo de Saavedra. Brancas jogam e ganham.
A sequência vencedora é: 1. c7 Td6+ 2. Rb5 Td5+ 3. Rb4 Td4+ 4. Rb3 Td3+ 5. Rc2 Td4! (um último recurso das negras) 6. c8 = T!! (não 6. c8 = D, pois seguiria 6. … Tc4+ 7. Dc4 e empate por afogamento do Rei negro) 6. … Ta4 7. Rb3 com ameaça de mate e da torre ao mesmo tempo.

As duas posições são, portanto, bastante distintas. A de Saavedra é indiscutivelmente famosa, a outra pede mais pesquisa, mas talvez ainda renda uma postagem aqui, afinal, derrotas de campeões mundiais sempre dão no que falar!