O Xadrez na Era Supervisonada

O xadrez mudou muito após o pleno desenvolvimento de computadores capazes de vencer os melhores jogadores do mundo. A partir dos anos 1980, as máquinas começaram timidamente a vencer grandes mestres, depois apareceu uma ou outra vitória isolada contra o campeão do mundo, até a definitiva derrota em 1997, quando Garry Kasparov inclinou seu rei na sexta partida do match contra Deep Blue.

Desde então, a questão não é mais se o homem pode bater a máquina, mas sim quão bem poderia jogar a máquina, e como ela ajudaria o homem a compreender melhor este jogo milenar que nos tem fascinado por tantos séculos. Foi o fim da ‘era não supervisionada” do xadrez.

Por muitos anos, nós humanos jogamos um xadrez misterioso, instigante. Não havia uma “resposta certa” sobre as mais variadas posições, especialmente alguns finais de partida. Aberturas precisavam ser analisadas exaustivamente em sessões de treinamento que duravam dias. Enganos eram frequentes, por várias vezes mestres prepararam em casa surpresas de abertura que foram simplesmente refutadas no tabuleiro, no calor da partida. Por isso, podemos chamar este tempo de era não supervisionada do xadrez.

Foi a época de Fischer, cuja formação como jogador foi inteiramente baseada em livros, revistas especializadas, pura prática e aconselhamento com outros grandes mestres (enquanto pôde encontrar jogadores no ocidente que ainda podiam lhe ensinar algo sobre o jogo). As comunicações ainda não estavam tão bem desenvolvidas, e as partidas dos adversários soviéticos e europeus chegavam com dificuldade, coletadas por amigos e colaboradores ao redor do mundo. Quando lhe ocorria uma ideia nova, ele não podia pensar “deixa eu saber aqui neste livro, ou com este grande mestre superior se esta jogada serve”. Não, ele mesmo respirava fundo, se colocava no outro lado do tabuleiro e ia atrás dos recursos possíveis para as peças contrárias.

Contra Fischer, e contra todo o resto do Mundo, havia a forte Escola Soviética de xadrez, detentora de todos os campeões mundias após 1948 (exceto Fischer). Era uma estrutura muito bem azeitada para formação serial talentos que, uma vez na elite, eram forçados a cooperar uns com os outros para o crescimento do xadrez soviético como um todo. Apesar de ainda não existir uma “resposta certa” para as questões do jogo, sempre era possível contar com a opinião de um ex-campeão do mundo, como Botvinnik ou Tal, senão lançar mão do enorme arsenal teórico disponível em língua russa, bem guardadas pelos melhores grandes mestres do mundo. Era o que mais se aproximava do que temos hoje, quando praticamente alcançamos a ‘era supervisionada’ do jogo.

A era supervisionada é muito diferente. Para começar, antes mesmo de ser desenvolvido o poder de cálculo de variantes e avaliação de posições no tabuleiro, o simples fato de os computadores terem possibilitado a criação de bases digitais gigantes de partidas já foi uma revolução. Isso já facilitou enormemente o acesso à teoria do jogo, construída ao longo de pelo menos dois séculos de partidas entre mestres preservadas. Mas não foi só isso.

Os algoritmos de xadrez ainda estão em plena adolescência, e estamos longe de ter a ‘solução’ do jogo, como já aconteceu ao primo distante jogo de Damas. Apesar disso, os computadores já estão muito próximos de fornecer a ‘resposta certa’ em cada posição possível. Há momentos em que eles eles calculam tão bem, produzem lances tão belos, que dão a impressão de que estão a pensar!

Ao acompanhar os comentários de grandes mestres que dão cobertura às partidas do match pelo Campeonato Mundial entre Magnus Carlsen e o desafiante Sergey Karjakin (ambos crias da época computacional do xadrez), é notório como o computador fornece os lances mais fortes, sugere ideias por vezes brilhantes que não são acessíveis à mente humana no espaço de tempo limitado de uma partida de torneio. Tampouco ocorrem ao comentarista que não tem pressão nem limitação de tempo para suas elucubrações. Aliás, os dois maiores trunfos do computador são justamente o tempo de resposta (segundos) e a profundidade de cálculo, que pode chegar a dezenas de jogadas à frente, enquanto a média alcançada por grandes mestres da elite é de “somente” cinco a dez jogadas.

Nesse momento, porém surge um incômodo. O comentarista  faz uma análise, diz sua ideia sobre uma determinada posição de partida (o que antes seria tomado como uma verdade), e o jogador médio que está acompanhando sente o ímpeto de “checar” com seu aplicativo de análises se o grande mestre está mesmo certo. É uma grande inversão de valores que pode trazer uma ilusória sensação de entendimento, já que tanto o computador quanto o grande mestre têm uma base sólida para lançar uma jogada, mesmo sem ser a melhor, mas o amador que segue as avaliações do computador sem questionar criticamente é como a casa construída sobre a areia. Há muitos perigos nessa crença cega.

O computador ainda não “compreende” tão bem o jogo, apesar dos avanços técnicos que permitem transformar em objetivos parâmetros numéricos os conceitos humanos para avaliar o jogo: quantidade, qualidade e mobilidade de peças, segurança do rei, controle de espaço, estrutura de peões etc. Um exemplo foi visto na quarta partida do match Carlsen x Karjakin, quando o russo (que se defendia em posição inferior) organizou sua peças num tipo de fortaleza e impossibilitou qualquer avanço do exército inimigo, enquanto o computador continuava a fornecer avaliações favoráreis a Carlsen, numa posição claramente igualada.

Karjiakin x Carlsen, NY 2016 WCC m4. Posição após 94. Rf2 (empate).
Isso nos ajuda a recolocar o boi na frente do carro, lembrar que são os homens e suas ideias maravilhosas de xadrez e de computação que tornaram possível a evolução que vemos hoje. Não esqueçamos que por muitos anos os esforços foram para fazer o computador jogar como um humano, e não convém agora querer que as pessoas joguem como um computador. Se um dia as pessoas não forem mais capazes de julgar o que diz um cálculo frio da máquina, quem estará trabalhando para quem?

Uma vez, o ex-campeâo mundial Mikhail Tal estava para jogar uma exibição de partidas simultâneas contra vários jovens talentos soviéticos e confidenciou a um colega temer as agudas preparações de abertura dos jovens, já que ele próprio não estava mais a par das últimas novidades, era final da década de 1970. O colega tranquilizou o campeão: “não se preocupe, quando acabar a teoria que memorizaram, então serão apenas eles mesmos jogando com as próprias ideias”. Tal venceu a maior parte das partidas. Será que a legião de jogadores que busca somente assimilar as agudas descobertas computacionais não estaria somente repetindo o que fizeram os jovens que enfrentaram Tal? O que acontecerá quando tiverem que jogar com suas próprias ideias? Haverá alguma?

A era supervisionada pode matar o xadrez? Ela está ainda no começo, mas seus efeitos já são notórios e crescentes. O risco é que no lugar da evolução do conhecimento enxadrístico, ela traga uma visão dogmática e superficial (que era um temor de Fischer, quando percebeu o peso das preparações de abertura em sua época). Podemos nos precaver, há uma coisa que está em nosso poder: desligar um pouco a máquina e pensar com nossos próprios meios. Afinal, o melhor computador já criado está dentro do crânio de cada um de nós.

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