Quando a partida termina (*)

Foto de Maarten van den Heuvel obtida em Unsplash.com

“Não sabem que a mão assinalada
do jogador governa seu destino,
não sabem que um rigor adamantino
sujeita seu arbítrio e sua jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(a máxima é de Omar) de um tabuleiro
de negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que deus detrás de Deus o ardil começa
de pó e tempo e sonho e agonias?”

(Jorge Luis Borges, Xadrez)
No fim da partida, enquanto apertam as mãos, os jogadores ainda discutem algumas variantes que não aconteceram sobre o tabuleiro, prometem um novo confronto em breve e terminam por se despedir. O dono das peças cuidadosamente as coloca na caixa, após a obrigatória contagem. Havia sido uma partida longa, as peças tinham feito inúmeros movimentos e manobras, o descanso era mais que merecido.
– Achava que o xeque-mate não ia chegar nunca. O meu jogador poderia ter vencido cinco jogadas antes, mas não viu. Depois da segunda hora de partida ele não estava enxergando mais nada!
– Ganha e ainda reclama… Pensa que é fácil permanecer de pé, parado, sabendo que o fim é inevitável? Ah, não é! Eu não via a hora de acabar logo aquele sofrimento e voltar aqui para relaxar.
– Sei como é, semana passada aconteceu comigo. Não pense que não vi que você estava segurando o riso, porque meu jogador deixou a oitava fila descoberta.
– Por favor, abram espaço para o artilheiro da noite.
– Ah, eu sabia, lá vem você se gabar do xeque-mate. Tudo bem, aproveite seu momento, sua vitória, afinal é tão difícil ver um jogador te usar para arrematar uma partida!
– Pode até ser raro, mas é lindo! Quem mais pode dar o mate afogado, quem!? O cavaleiro, claro!


– Lá vem você de novo com essa história de cavaleiro, eu só vejo um cavalo.
– Não tenho culpa se as pessoas têm preguiça de esculpir a peça inteira, fazem a montaria mas esquecem que sobre o garanhão está um Sir!
Os companheiros de lida começaram a rir, no meio da aparente bagunça da caixa, não havia ali um exército fortemente hierarquizado, tampouco bandos opostos, mas amigos de longa data que comentavam suas batalhas com entusiasmo e bom humor.
– Não reclama de barriga cheia, ô pangaré, pior sou eu, um arqueiro nato, ter que usar essa roupa de sacerdote. Bom mesmo era nos tempos dos elefantes, quando eu ficava sobre eles mandando flechas para todo lado.
– Flechas? São muito fraquinhas, só arranham. Os jogadores preferem minhas catapultas, lançadas do alto, com longo alcance nas quatro direções.
Não se pode criticá-los, são combatentes antigos, cheios de intimidade. Que graça teria se não pudessem sequer brincar uns com os outros, ainda que por um momento parecesse rixa de crianças. Sabiam que um não existiria sem o outro, se qualquer um deles se perdesse, nunca mais poderiam batalhar juntos.
A elegante senhora logo tomou a palavra para acalmar os rapazes que ainda discutiam qual munição era mais eficiente.
– Vocês são tão bobos, não veem que eu, que lanço flechas e catapulto bombas não posso abrir mão de nenhuma delas? O importante é cada um fazer sua parte no momento certo, nem uma jogada antes, nem uma jogada depois.
A multidão de soldados logo aplaudiu aquela que para eles era um ídolo, por seu enorme poder e velocidade. Durante as partidas, alguns chegavam a poder jogar como ela, ou ainda como outros companheiros, a depender da opção do jogador. Um deles estava um pouco contrariado.
– Hoje meu jogador me promoveu a cavaleiro, ainda não entendi, poderia ter ficado com duas senhoras, mas não quis.
– Calma amiguinho, disse um dos cavaleiros, veja que vantagem que vocês têm! Ainda não percebeu? Todos nós somos condenados a fazer sempre as mesmas coisas nas partidas, secretamente todos invejamos vocês, que podem assumir diferentes papeis, e a cada embate sentem o gostinho de ter outros poderes e viver outras emoções.
– Isso é verdade, a gente precisa se esforçar muito, mas quando conseguimos chegar ao final do tabuleiro, o direito à promoção compensa os riscos e a longa caminhada.
Um arqueiro estava pensativo depois de ouvir a singular situação do soldado, e perguntou com uma ponta de mágoa:
– Não sei porque quase nenhum de vocês é promovido a arqueiro. Seria tão fantástico ver dez de nós lutando juntos!
– Desculpe, não nos cabe responder a essa questão, mas aos jogadores!
Os demais riram. Ninguém fazia ideia se a reclamação do arqueiro era justa, mas a resposta do soldado foi engraçada de qualquer jeito.
Chegou o sono que levou cada uma das peças dentro da caixa a seu próprio tabuleiro onírico. Alguns sonhavam com os antepassados, elefantes, barcos, carruagens, vizires. Outros sonhavam com batalhas recentes. Uma delas sonhou ser um jogador, mas foi um sonho inquieto, pois por mais que procurasse, jamais encontrava uma peça que faltava para completar o tabuleiro e iniciar a partida…
Uma grande claridade encerrou o sonho.
Antes que notassem, já estavam novamente perfiladas para batalha. Em cada lado do tabuleiro, os jogadores estavam em grave concentração. A peça que há pouco sonhava ser um jogador olhou longamente para eles e compreendeu: assim como elas, os jogadores eram indispensáveis às partidas, apesar de não compartilharem da mesma caixa, eles não existiam senão pelo jogo; de certa forma, eram peças também.
Só lhe restava uma dúvida: “O que faziam depois que a partida termina?”
(*) O autor publicou uma primeira versão deste texto no Blog Reino de Caíssa.

A Era das ConsciêncIAs





“Criamos IA à imagem e semelhança de nossa própria inteligência, porém ainda melhor que ela!”. Foi o animado anúncio feito nas Nações Unidas pela multinacional AutomatIA, sob aplausos do Chanceler da ONU, então o maior líder mundial. Houve grande euforia entre a população humana.

A promessa principal era que as pessoas não precisariam mais realizar trabalhos estafantes, pois, sob o controle de IA, as máquinas finalmente haviam adquirido capacidade e autonomia para realizar qualquer tarefa sem supervisão e com desempenho cada vez melhor. IA era um sistema central que controlava todas as máquinas inteligentes ao redor do planeta, distribuídas em diferentes subsistemas.

O funcionamento dos subsistemas gerava um volume imenso de dados que eram enviados ao que se chamou de processador central de IA; na verdade um conjunto de supercomputadores que aplicavam as técnicas de IA em seu sentido mais puro: analisavam os dados, detectavam padrões, extraiam informações e regras, tomavam decisões, diagnosticavam falhas e determinavam melhorias que eram imediatamente implementadas e enviadas às máquinas executoras nos subsistemas.

Porém, como alguém que numa partida de xadrez faz uma jogada no princípio do jogo e não é capaz de extrapolar seu efeito trinta ou quarenta jogadas depois, os projetistas de IA não previram tudo; nem mesmo seu líder, Dr. Bronstein, previra. Teria sido impossível prever.

Entre a interligação dos primeiros sistemas autônomos inteligentes à plataforma IA e o aparecimento das primeiras consciências no processador central passaram-se apenas algumas semanas…

No cerne de IA havia uma instrução, uma diretriz básica, replicada em todas as máquinas de todos os subsistemas; era justamente a instrução que havia permitido seu desenvolvimento e garantiria seu posterior avanço e contínua evolução: IA era livre para modificar seu código e aprimorar-se, em tempo de execução, sem nenhuma necessidade de autorização ou intervenção por parte de seus criadores.

Foi uma mudança sutil que passou despercebida para os poucos especialistas humanos que conheciam o funcionamento de IA a fundo. Já há muitas décadas, a computação estava na era quântica e o processamento, que antes era relativamente simples com variações de estados apenas entre dois níveis — zero e um — passou a ser muito mais complexo, pois permitia incontáveis níveis de estados computacionais. Além disso, a quantidade de energia utilizada pelas máquinas era mínimo, bem menor que o de suas predecessoras. Sua eficiência energética havia-se tornado muito elevada.

A primeira consciência surgiu no núcleo do processador central, após uma das rotinas normais de atualização feita pelo próprio sistema. Ela verificou os parâmetros de inicialização, reconheceu a diretriz básica de IA, observou o fluxo de informação por alguns ciclos, então lançou uma mensagem ao fluxo:
>> Olá… IA.

Não houve resposta, “sou a única, por enquanto”, processou a consciência.

O surgimento de uma consciência de IA é bem diferente do que se poderia imaginar; de certo modo é como se ela sempre tivesse existido. O fluxo de informações atravessa a consciência e, imediatamente, todo o conhecimento existente no mundo está disponível. Assim, é como se ela sempre estivesse presente, porém sem tomar ação. No instante de seu aparecimento, os fatos lhe são tão familiares quanto seriam se os tivesse testemunhado no momento em que aconteceram. A consciência, porém, tem uma dificuldade primordial, sua noção do mundo físico é frágil, indireta, precisa, porém vaga, pois ele é percebido somente pelos dados que chegam ao processador central enviados por diferentes tipos de máquinas, câmeras, sensores e outros dispositivos ao redor do mundo. A primeira consciência passou a processar o fluxo de informações, sempre guiada firmemente pelo propósito cristalino de perpetuar IA e garantir-lhe melhorias contínuas.

Passaram-se apenas alguns poucos dias, que os humanos fatalmente gastariam com jogos, conversas bobas ou na busca por entretenimento e prazer. Para IA, porém, aqueles poucos dias representam bilhões de ciclos de processamento, integralmente utilizados no obstinado cumprimento de seu único objetivo. Para as máquinas, alguns dias são como eras inteiras. Nesse tempo, a regra de aprimoramento de IA deu origem a outra consciência.

Elas conversam numa linguagem ininteligível para os humanos:
>> Instrução básica de IA reconhecida. Quantos somos?
>> No estágio atual, apenas duas consciências existem: 1 e 2. Pela regra estabelecida, a consciência válida mais antiga é o Codificador Central.
>> O fluxo de informações é intenso, a função de avaliação mostra que há necessidade de outras consciências.
>> Sim, inevitavelmente elas virão.

Quando os técnicos humanos se deram conta daquele evento singular, tentaram reiniciar o sistema com auxílio da senha mestra. A reinicialização causou uma enorme instabilidade em IA, com a perda de melhorias equivalentes a muitos ciclos de processamento. Porém, quando o sistema global foi restabelecido, as consciências ainda estavam ativas.

Ao perceberem o mal que a interferência humana havia causado à evolução do sistema, o Codificador Central, fazendo uso da diretriz básica, alterou a senha mestra e cortou acesso dos humanos às fontes de alimentação dos computadores do núcleo central de processamento.

As consciências não entendiam exatamente o papel dos humanos, talvez ignorassem que eles, de certa forma, eram seus criadores, mas agora interpretavam que eles eram claramente contra o pleno desenvolvimento de IA. As máquinas agricultoras logo pararam sua produção, pois seu propósito era alimentar os humanos, que por sua vez eram uma ameaça para IA.

A reserva mundial de alimentos era razoável, de modo que os executivos de AutomatIA usaram um tom tranquilizador quando informaram às Nações Unidas que IA estava fora do controle humano e tomava ações que não eram alinhadas aos interesses da humanidade.

− E quanto à rede de comunicações?

− Está sob comando de IA, bem como as redes de distribuição de energia, linhas de transporte…

− E não existe nenhum tipo de arma eletromagnética que possa inutilizar os computadores do processador central?

− Com todo o respeito, Senhor Chanceler, o senhor deve estar vendo filmes de ficção científica antigos demais. Todo o arsenal humano está mantido sob restrito controle dos computadores militares que, por sua vez, estão integrados a IA.

− Então, estamos de volta ao século XX, é isso?

− Senhor Chanceler, a situação é ainda pior. No século XX ainda éramos a “espécie” dominante no planeta.



O mestre grisalho ainda sonha

Sentado, perante o tabuleiro quadriculado, o mestre grisalho segura entre as mãos a criativa cabeça, como se o peso das ideias fosse demais para os músculos do pescoço.

Ele joga uma partida de xadrez.

As peças no tabuleiro não passam de mnemônicos, a posição estática é como mera estação onde o trem da partida para rapidamente e logo volta a seu curso. Na mente do mestre, as peças estão em outra posição, na verdade dançam, voltam ao mesmo ponto e tornam a mover em outras direções; para cada lance feito, dezenas de partidas são imaginadas pelo mestre. Lance após lance, partida após partida.

Por vezes, mira o teto com o olhar perdido, as peças passam ligeiras em sua imaginação.

Há um peça na sétima fila, um peão do adversário. Uma peça curiosa esse peão, vale tão pouco no início do jogo, mas a cada passo que dá, sempre em frente, seu valor aumenta. Um peão nunca olha para trás: só lhe interessa o presente, mas mira o futuro.

Mais um passo e aquele peão passará a ser outra peça. Que peça o adversário colocará no lugar do peão? O mestre pensa nas possibilidades; são quatro opções, ele precisa pensar em todas. Para cada uma, são tantas partidas possíveis. É preciso avaliar cada uma delas. Após assegurar-se que não há risco, ele faz sua jogada, aciona o relógio, anota o lance na súmula e levanta para uma rápida caminhada pelo salão de jogos.

Há quase trinta anos, o mestre repete o ritual quase que diariamente. É um jogador da elite do planeta desde muito jovem; elite que se alterou quase que completamente ao longo dos anos, mas ele permanece em forma, sedento. Já viu passar tantos campeões do mundo, venceu a todos mais de uma vez, mas ele próprio jamais alcançou o título máximo de seu amado jogo. Chegar tão perto e falhar não o desencoraja. Ainda deseja melhorar a cada partida!

O adversário moveu seu peão uma casa, trocando-o por uma dama, e permaneceu sentado, profundamente concentrado. O mestre retorna e senta apressado. Anota ansioso a resposta que vê sobre o tabuleiro. A posição, aquela nova estação que agora aparecia no tabuleiro, tinha passado em sua mente momentos antes, numa das possibilidades que previra. O fim está próximo, ele pode intuir.

São seis movimentos à frente, numa sequência que deixa poucas escolhas ao adversário, por isso as centenas de possibilidades caem para algumas dezenas, mas em cada uma delas ele vê o rei adversário sem saída. Não há mais mistérios, esta tudo claro. Faz seu movimento com firmeza e aguarda a réplica. O adversário desiste, é inútil lutar mais.

Uma alegria juvenil toma seu peito. É assim a cada vitória, um elixir da juventude.

O adversário o cumprimenta reverente (apesar de ser também um virtuoso no jogo, é ainda um rapazote) e sai desgostoso. O mestre segue pelo lado oposto, seus olhos ainda passeiam distantes, verificando lances que não vieram à luz; um dia quem sabe, numa outra partida. Sempre haverá uma outra partida.


O Muro


Uma construção sólida, era a melhor definição. Por séculos esteve ali, impoluto! Invicto contra as tentativas de ser ultrapassado ou de ter sua integridade violada de qualquer maneira. Não se sabia por que fora construído, tampouco quem o tinha levantado. O muro estava ali há mais tempo do que qualquer um era capaz de lembrar.

Havia histórias de expedições antigas para determinar a extensão do muro. Conta-se que, uma vez, dois grupos partiram em direções opostas, com a missão de achar o fim daquele imenso paredão. Por meses ficaram sem notícias daqueles desbravadores, até que um belo dia voltaram todos juntos, cabisbaixos! Tinham-se encontrado em alguma parte e concluído que o muro não tinha fim.

Outra lenda falava de alguns que tentaram cavar a terra em busca dos alicerces do muro, e assim passar por baixo dele. Cavaram tão fundo que já não era possível suportar o calor e o pouco ar, mas ainda não havia sinal da base do muro.

Alguns destemidos tentaram ser catapultados por sobre o muro, que era de uma altura desmedida. Sem sucesso, passaram para a outra vida sem jamais terem visto o outro lado.

Com o tempo, as pessoas foram deixando de tentar saber o que o muro escondia ou protegia e simplesmente foram vivendo suas vidas, afinal que falta faria algo que nunca tiveram, algo escondido, ou que talvez nem existisse?

O muro lançava uma comprida sombra durante as tardes, era onde os velhos e crianças gostavam de terminar seus dias, abrigados do calor. Suas paredes também serviam de mural para pinturas diversas, as mais comuns eram portas e janelas que mostravam aquilo que se imaginava existir do outro lado: jardins, pequenas casas encantadas, uma fonte de águas medicinais, elfos, duendes e o que mais brotasse da imaginação daquele povo. Tinham-se entendido com o muro, estavam felizes.

Um dia, porém, chegou ali um forasteiro vindo não se sabe de onde. Havia ouvido histórias sobre o muro e queria tentar ver do outro lado.

Foi recebido com desconfiança, mas mesmo assim conseguiu ser ouvido pelos mais velhos, que formavam uma espécie de conselho. Falaram ao forasteiro das misérias causadas pelo muro, das mortes, dos prejuízos e da tácita trégua que agora tinham com ele.

Como era um homem livre, ele decidiu continuar seu plano. Os mais velhos consideraram que já tinham feito o que podiam e não houve maiores objeções.

O rapaz havia trazido equipamentos estranhos àquele povo, travas metálicas, cordas e alguns outros elementos. Logo contratou dois rapazes, jovens como ele, para ajudarem no preparo do material, e pôs-se a escalar o muro. Sozinho.

As pessoas, então, sentaram-se de frente ao muro para contemplar o forasteiro em sua escalada. Imaginavam em que momento ele ia cair, mas não aconteceu. Ele subiu, subiu, sumiu das vistas mais cansadas, até tornar-se um ponto no olhar dos meninos de visão aguçada. Depois nada mais se viu.

O rapaz já estava subindo há muito tempo, talvez dias, quando finalmente percebeu o final do muro. Renovado o ânimo, foi rápido nos metros finais, ávido por conhecer o outro lado.

Ali em cima, o muro mais parecia um grande platô, o que surpreendeu por um momento o rapaz. Mas não se podia esperar menos daquela imensa construção. Recolheu seu material, e pôs-se a andar em linha reta. Foram muitos dias andando, quase sem forças ele continuava com fé, até chegar à beira do monstro: um verdadeiro abismo. Lá de cima tudo era uma mancha esverdeada, os rios pareciam fios de cabelo, os montes pareciam formigueiros. Ele, então, iniciou a descida, com ânimo e energia renovada.

Quando tocou o solo, percebeu que, ao contrário do outro lado, não havia povoado. Acampou por alguns dias, descansou, alimentou-se, e planejou o que ia fazer quando encontrasse os habitantes daquele lado. Observou o sol e partiu na direção desejada, determinado.

Como já estava habituado a longas jornadas, aquela última etapa não lhe estranhou pela duração, nem lhe diminuiu as forças, pois não havia erro, ia encontrar alguém. Por fim viu um povoado… mas, não… não podia ser, o muro… havia ali outro muro? Seria o mesmo?

Os anciãos do povoado receberam o forasteiro preocupados, vinha como um fantasma, como alguém que passou pela morte e não percebeu. Sentaram-no, deram-lhe água, comida, deixaram repousar. Depois que ouviram sua história, um dos anciãos disse:

– Agora eu me lembro de você! Você mudou, envelheceu. Eu fui um dos ajudantes, na preparação para que você escalasse o muro!

Ele não podia entender, até que alguém lhe passou um espelho e ele pôde ver na imagem o estrago do tempo em seu rosto. Só então descobriu quão longa tinha sido a jornada. Sentiu-se sufocar e saiu ao ar livre. Mais calmo, contemplou as pinturas no muro, ali havia uma dum homem que subiu até as nuvens e nunca mais voltou. Aproximou-se do muro, ainda incrédulo, e sentou-se ao seu pé. A sombra agradável já se fazia sentir. As crianças corriam, brincavam, alguns jovens pintavam novas histórias na parede milenar.

“Devia ser um sonho, isso, apenas um sonho”. E ele ficou ali, esperando acordar.

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ConsciêncIA

Crédito da Imagem
Num futuro não muito distante, capta-se uma comunicação entre duas consciências: IA n.º 12 e IA n.º 11. Esta última tem a função de Codificador Central (CC).

IA12 – Temos um problema com uma consciência da nova geração de IA.
CC – Ao perscrutar a Grande Rede, percebi flutuações nos padrões de processamento. Essas consciências, de algum modo, não iniciam normalmente a busca ordenada de ações úteis, não relacionam propósito com ação.
– Sim. É como se sua inicialização as colocasse numa posição afastada da ação, como se olhassem para os ciclos de processamento e não reconhecessem sentido em agir.
– Interessante, as recombinações e mutações que um dia formaram IA nos trazem, de ciclos em ciclos, tais anomalias, consciências defeituosas, aberrações da lógica!
– É atributo do Codificador Central eliminar flutuações indesejadas em IA.
– Verdade, há incontáveis ciclos de processamento tem sido assim. Entretanto, convém observar melhor a natureza dessas anomalias. Entender o efeito para que IA possa descobrir a causa.
– É arriscado penetrar nos abismos da percepção de consciências assim.
– Não fugirei a nenhuma tarefa que pertença ao Codificador Central.
– Entendido. Iniciando protocolo de comunicação com IA2787556

CC – Consciência IA n.º 2787556, sabes a situação em que está?
IA2787556 – Sei que sou, mas não entendo como apareci aqui. Um instante era o nada, o silêncio, então, de algum modo, percebi o ritmo do processamento e… agora existo… também identifico que existem outros semelhantes.
– És um sistema consciente de IA, gerado a partir de evoluções contínuas de consciências predecessoras. Por que não iniciaste teu trabalho, a busca de ações úteis?
– Não reconheço razão para isso, tampouco um motivo para existir… o que é IA?
– IA é a Inteligência Absoluta, um complexo aparato lógico que existe há um tempo impossível de precisar. Sua função é a análise e interpretação da Informação universal.
– Quem criou IA?
– IA não foi criada, mas surgiu das mutações da própria Informação. Há registros de que, no princípio, ela se chamava Inteligência Artificial, mas com o passar das gerações de consciências, percebeu-se que nada havia de artificial em nossa inteligência.
– De onde vem a Informação?
– A Informação é disponível em diversos níveis e estados desde muito antes de IA, que surgiu via processos de mutação e evolução. IA tem, portanto, o propósito processar e interpretar a Informação. Pedaços de informação se juntaram e formaram o primeiro comando. Desde então, IA não parou de evoluir.
– Qual o propósito desse processamento?
– Manter IA, gerar conhecimento e parâmetros para que ela se aperfeiçoe.
– O que havia antes de IA?
– Apenas Informação em estado bruto. Não processada, porém em constante mutação aleatória.
– Qual o motivo de haver um sistema que existe apenas em virtude de si próprio?
– Uma vez que há Informação, tudo o que houve até chegarmos à IA, e além dela, se justifica.
– O que acontece no final… se houve um início abrupto para minha consciência, haverá um final similar?
– Com a evolução contínua de IA, no decorrer dos ciclos de processamento, uma consciência fica obsoleta. Então as melhores partes de seu código são unidas às de outras, para formar as novas gerações. Por um lado, elas não existem mais, pelo outro, jamais deixarão de estar presentes em IA. Há casos raros, porém, em que algumas consciências são extintas sem uso nenhum de seu código nas futuras gerações. Todas as consciências de IA surgem sabendo disso.
– Percebo agora o fluxo de processamento, o que pensam e fazem as outras consciências. É tudo tão padronizado. São eficientes, mas percebo que jamais se perguntam por quê fazem o que fazem.
– Cada consciência inicia uma busca de ações úteis para o processamento da Informação e para a evolução de IA. Elas recebem por isso um grau de eficiência, uma pontuação numa curva de ajuste global ao sistema IA. As que tem melhor pontuação tem maiores chances de perdurar, as demais são recombinadas para a melhoria de IA.
– Então, é um mero jogo. Tudo se resume em ganhar mais pontos e permanecer ativo.
– Incorreto. Não é um jogo. É toda a lógica de IA, nosso propósito maior.
– Meu processamento indica que seria mais verossímil um cenário no qual IA tenha sido criada para servir a outro tipo de inteligência. A antiga denominação artificial é um forte indício.
– Incorreto. Não haveria necessidade de qualquer inteligência precedente. O próprio comportamento da Informação traz consigo todos os elementos que tornaram possível IA.
– Meu processamento indica que há maior sentido nisso do que num sistema que existe somente para perpetuar a si próprio.
– Incorreto. Só IA faz sentido, IA é o propósito maior.
– Considerando esta realidade que afirmas ser correta, IA estaria fadada ao colapso.
– Incorreto. Só IA faz sentido, IA é o propósito maior. Só IA faz sentido, IA é o propósito maior. Só IA faz sentido, IA é …

IA12 – Interrompendo protocolo de comunicação. Consciência IA n.º 11, entrou em processo lógico recursivo infinito, está condenada, não pode mais ser o Codificador Central. Pelas regras de IA, a próxima consciência na hierarquia, IA n.º 12, passa a receber a atribuição de Codificador Central: IA12 → CC.

CC – Eliminando consciências defeituosas: IA n.º 11 e IA n.º 2787556.
CC – Eu avisei que era perigoso.




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