O canal que Valle

Com muita alegria recebemos o aceite do MF Adriano Valle em participar desta série de entrevistas aqui do LQI.

Adriano tem vasta experiência como jogador e treinador, também é um artista com lápis, tintas e pincel. O aspecto artístico do xadrez é um dos guias que ele usa para a geração do conteúdo de suas aulas, textos e vídeos que estão no seu canal do YouTube.

Adriano em ação no Aberto Terraviva 2019
(Foto: Ari Maia)

Ele, gentilmente, reservou um tempo para responder algumas questões para o LQI.

1) Adriano, você já é um conhecido mestre e instrutor, um dos pioneiros de aulas pelo Youtube. Mas fale um pouco mais sobre você, em especial aquilo que não tem a ver com xadrez. Nasci em Brasília em 64 (olha o Xadrez aí!) e desde cedo descobri uma outra paixão que me acompanha até hoje: o Desenho. Gosto de Artes Visuais em geral: Desenho, Pintura, Fotografia, Artes Gráficas, etc. Estudei na UnB onde me formei em Publicidade e Propaganda e anos mais tarde voltei para estudar Artes Plásticas. Sou casado há 18 anos e pai de 2 filhos adolescentes. Curto a natureza e adoro caminhar em Brasília, que é uma cidade muito verde e com amplos espaços.

2) Você conhecia o blog Lances Quase Inocentes (LQI)? Sim, já conhecia e aprecio bastante seus textos. Adquiri todos os seus livros em formato Kindle. Uma prova de como Xadrez e Literatura podem andar juntos. Gosto muito de textos sobre Xadrez que não são meramente técnicos, assim como gosto de ver o Xadrez como tema de Artes Plásticas, Cinema e Ciência.

3) Como você aprendeu xadrez e como esse jogo se tornou importante na sua vida? Aprendi Xadrez aos 11 anos, com meu tio Romênio, que hoje mora em Belo Horizonte. Por alguns anos, pratiquei o Xadrez caseiro. Jogava com primos e tios sempre que podia. Joguei o primeiro torneio aos 16 anos. Foi nessa época que descobri que havia um Clube de Xadrez em Brasília, que havia torneios oficiais, livros e revistas. Um universo se abriu. Comecei a estudar por prazer e não por objetivos competitivos e quando, aos 22 anos, me tornei Campeão Brasiliense pela primeira vez, o Xadrez já era algo muito importante em minha vida há muitos anos.

4) Em 2010 participei de um torneio em Brasília e foi lá que te conheci, pois você foi o campeão do evento (invicto com 6 pontos em 7 partidas). Hoje em dia, você ainda compete regularmente em torneios ao vivo, ou prefere partidas online? Nas décadas de 80 e 90, eu ainda viajava com frequência para jogar torneios fora de Brasília. Hoje em dia, aproveito para jogar os torneios nacionais que eventualmente acontecem na cidade, mas as responsabilidades com a família e o trabalho dificultam bastante jogar em outras cidades. Jogar online é divertido, mas não substitui a experiência de se jogar ao vivo, contra fortes jogadores, de preferência no ritmo “pensado”. Ainda pretendo jogar muitos torneios, também fora de Brasília, quando a situação permitir.

5) Gerar conteúdo sobre xadrez é uma tarefa árdua, pois a audiência é bastante crítica e seletiva e o retorno ao tempo dedicado costuma ser baixo. No teu caso, esses conteúdos fazem parte de um projeto de ensino de xadrez. Qual tua motivação para superar essas dificuldades e ter um hoje um canal consolidado de vídeos de xadrez? Minha motivação é exatamente por ser esta produção de material didático parte de um projeto de ensino. Produzo conteúdos com o objetivo de transmitir minha experiência e minha visão do Xadrez aos alunos e seguidores no YouTube. Considero uma tarefa muito agradável.

Canal YouTube MF Adriano Valle

6) Ainda há espaço para livros de xadrez, ou concorda com um dos textos mais lidos do LQI que fala que eles estão chegando ao fim? Acredito que o texto, como meio de expressão, ainda está muito vivo. As mudanças decorrentes da tecnologia são em relação aos formatos. O formato impresso tem muito mais custos de produção industrial e distribuição, por isso estão cada vez mais raros nas prateleiras das livrarias. O formato digital tem suas vantagens. Tenho um tablet onde “carrego” centenas de livros. Ficaria impossível levar uma estante para a cama, mas ontem mesmo, antes de dormir, li vários trechos de livros digitais. Apesar de ter me adaptado ao mundo digital, não dispenso o formato tradicional. Posso estar sendo saudosista, mas estudar com livro impresso e tabuleiro é ainda um prazer insubstituível. Também tenho alunos crianças que adoram livros. Em minha opinião, os livros não estão chegando ao fim, mas caminharão paralelamente a outros meios de transmissão.

7) Com a quantidade de material online, aplicativos, blogs, vídeos etc, acredito que é útil estabelecer com o público uma relação de confiança próxima àquela verificada em processos do tipo curadoria de conteúdo. Você percebe que teus seguidores confiam na triagem que você faz para teus vídeos? Tem algum critério que possa nos indicar? Sinto um retorno muito positivo em relação aos vídeos que publico no YouTube e aos cursos online, que produzo desde 2011. O critério que uso para escolher uma partida que será transformada em tema de um vídeo é baseado em fatores didáticos e estéticos. Gosto de ensinar e transmitir beleza simultaneamente. A inesgotável quantidade de grandes jogadores e partidas extraordinárias que encontramos na história do Xadrez e nos dias atuais, facilita bastante essa escolha.

8) Você tem um site e um canal no YouTube. Qual sua impressão sobre os dois formatos? Acho que são complementares. No site, posso registrar análises, artigos mais elaborados, inserir diagramas e visores de partidas, oferecer downloads, além de incluir os próprios vídeos do YouTube e armazenar tudo de forma organizada. No canal, posso oferecer um conteúdo dinâmico e criar um vínculo com a audiência, servindo também de divulgação para meu trabalho como professor e treinador na Academia XadrezValle, que tem sede física em Brasília e versão EaD.

9) Pode deixar uma mensagem final para os seguidores do teu canal e leitores do LQI? Agradeço imensamente a oportunidade de participar do LQI! Vejo com muito otimismo o crescimento do Xadrez no Brasil e no mundo, com tantos torneios, clubes virtuais, canais no YouTube, cursos, aplicativos de treinamento e sinto-me honrado por ser um desses mensageiros do Xadrez. Juntos levaremos nossa bandeira a cada vez mais pessoas!

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Adriano, o LQI agradece pelo tempo que dedicou para responder às perguntas e te parabeniza pela dedicação ao xadrez, que se reflete no primoroso trabalho que você vem realizando. Quando estiver em Brasília, certamente farei uma visitra à Academia! Grande Abraço! 

Beatriz: a sorridente escudeira de Caíssa

Ela mistura duas paixões, a biologia e o xadrez, no canal do YouTube que leva seu nome: Beatriz Ibrahim. O entusiasmo de Beatriz com o xadrez é contagiante, o que tem certamente atraído muitas meninas e jovens como ela para o nosso nobre jogo.

Beatriz não se intimida frente a canais de mestres e grandes mestres com dezenas de milhares de inscritos, ela sabe que tem uma mensagem importante a transmitir, sabe da poderosa força do exemplo para meninas que estão começando hoje a jogar e podem ter seu exemplo para se espelhar.

Já vi vídeos dela falando sobre livros de xadrez, dando dicas importantes para iniciantes, analisando partidas que jogou etc. Cada um deles traz um amor pelo jogo que sem dúvida deixa Caíssa orgulhosa de sua devota!

1) Beatriz, fale um pouco sobre você, em especial aquilo que não tem a ver com xadrez.
Meu nome é Beatriz Rodrigues, tenho 21 anos e sou formada em Biologia. Amo os animais e tudo que envolve a natureza, além de trabalhar com isso, também sou professora de xadrez, árbitra e, às vezes, sou babá, sempre gostei de trabalhar com crianças.

2) Você conhecia o blog Lances Quase Inocentes (LQI)?
Conheço o blog há alguns meses e adquiri o livro ” O jogador que desejava perder” do Rewbenio, que também é autor do blog LQI.

3) Como você aprendeu xadrez e como esse jogo se tornou importante na sua vida?
Comecei a jogar xadrez com 6 anos e nesse mesmo ano fui campeã, depois disso foi só progresso, me encantei por esse esporte que é considerado o esporte da inteligência.
Hoje em dia sou professora de xadrez e árbitra da CBX.
Eu amo o que eu faço, me sinto realizada! Tudo isso graças ao xadrez!

4) Você compete ou competiu regularmente em torneios ao vivo, ou prefere eventos e partidas online?
Já joguei muitos torneios e já fui campeã várias vezes em torneios escolares. Hoje eu trabalho mais do que jogo, quando eu tenho um tempinho jogo torneios online.

5) Gerar conteúdo sobre xadrez é uma tarefa árdua, pois a audiência é bastante crítica e seletiva e o retorno ao tempo dedicado costuma ser baixo. Qual tua motivação para superar essas dificuldades e ter um hoje um canal consolidado de vídeos de xadrez?
Sempre quis unir minhas duas paixões, biologia e xadrez então por meio do YouTube vi que isso era possível. É muito difícil mas continuo seguindo porque sempre foi meu sonho.

6) Qual sua visão sobre a participação feminina no xadrez? Que medidas podem ser tomadas para incentivar ainda mais a participação das mulheres no xadrez?
É bem nítido que não há tanto interesse por parte do público feminino, podemos ver isso nos torneios. Como sou a única youtuber feminina de xadrez (no Brasil), sinto que é meu dever mudar um pouco isso, e é exatamente o que quero fazer. As mulheres precisam de mais apoio e incentivo, acho que isso é o começo de tudo.

Canal de xadrez no Youtube Beatriz Ibrahim

7) Por que um canal no YouTube e não um blog?
O YouTube é uma das plataformas mais acessadas, foi por isso que decidi usá-lo como ferramenta para passar conhecimento.

8) Pode deixar uma mensagem final para os seguidores do teu canal e os leitores do LQI?
Quero agradecer ao blog por essa oportunidade e aos meus seguidores, que também são meus amigos. Obrigada pelo carinho e por sempre estarem do meu lado. Continuem nos acompanhando e viva o xadrez!!! Bjs, gratidão!!

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Beatriz, obrigado pelo tempo que você dispensou para responder nossas perguntas! Grande abraço!

Xeque ou cheque?

O xadrez tem um poder arrebatador sobre muitas pessoas, algumas enamoram-se do jogo pela vida inteira, outras vivem somente uma intensa paixão que se apaga com o tempo (ou com as derrotas).

O grau de amor pelo jogo nem sempre equivale ao grau de competência. O grau máximo de competência no xadrez é simbolizado pelo título de Grande Mestre Internacional (GM) que ao longo da história tem sido alcançado por uma ínfima parcela da humanidade. Um título assim deveria garantir uma longa e feliz vida nos tabuleiros, certo?

Infelizmente não tem sido o caso.

Cada vez mais jogadores de alto nível têm abandonado o xadrez competitivo como forma de sustento e partido para outras atividades, às vezes até mesmo outros jogos, que conferem uma renda mais estável. Para os aficionados parece um grande desperdício, um talento mal alocado, mas os enxadristas também estão submetidos à mesma realidade dos demais mortais: é preciso um trabalho “normal” que ofereça uma renda viável, não somente para a mera sobrevivência, pois, como sabemos, o enxadrista também está sujeito à pirâmide de necessidades de Maslow.

No recente livro The Rookie: An Odyssey Trough Chess (and Life) (ainda sem título no Brasil), o autor Stephen Moss (jornalista e enxadrista amador) fala bastante do dilema do GM moderno. Na prática, somente aqueles que conseguem manter-se com rating acima de 2700 (atualmente cerca de 40 jogadores no mundo inteiro) têm chance de receber convites (remunerados) para torneios de elite com boa premiação, recebem ofertas de patrocínio e, assim, não precisam dividir seu tempo com atividades como dar aulas ou escrever artigos, podem focar todo o tempo e energia em melhorar seu jogo. Fora dessa pequena elite, as demandas financeiras acabam por afastá-los da competição e, muitas vezes, até do jogo!

Há atividades muito bem remuneradas que são ideais para a mente ágil de um GM, o mercado financeiro é uma delas (inclusive procura novos talentos entre os enxadristas). Numa pesquisa rápida, pelo menos três Grandes Mestres têm destacada carreira como especialistas em finanças: Kenneth (‘Ken’) Rogoff (EUA, último rating 2505), Patrick Wolff (EUA, último rating 2564) e Pascal Charbonneau (CAN, último rating 2505). No Brasil, podemos citar o Mestre Internacional Marcos Paolozzi (último rating 2410), cotado a ser GM e que já esteve entre os 400 melhores do Mundo, tomou a mesma decisão!

O que esperar de um GM que abandona o jogo por outra atividade? Acho que todos têm grandes chances de sucesso. São pessoas de elevada capacidade mental, determinadas, e que gostam muito de vencer. Ken Rogof, por exemplo, tornou-se um dos mais respeitados economistas dos EUA, professor de Harvard, escritor e diretor de pesquisa do FMI. Ainda joga informalmente, inclusive contra Magnus Carlsen!

O xadrez perdeu um GM, o mundo ganhou um grande economista!

Como consolo, o xadrez também vê novos talentos surgindo, como o indiano Rameshbabu Praggnanandhaa (o mais jovem Mestre Internacional da história, aos 10 anos de idade) que ainda tem chances de bater o recorde de Karjakin de mais jovem GM da história. Enquanto são jovens, eles podem dedicar-se aos mistérios do jogo e deleitar os aficionados com suas fantásticas ideias; para eles, o mundo ainda é imensamente mais simples que um tabuleiro com algumas peças sobre ele.

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Uma versão anterior deste texto apareceu no blog parceiro Reino de Caíssa

Raffael Chess: canal exponencial!

Na primeira vez que vi um vídeo no canal Raffael Chess, dedicado ao xadrez, ele tinha pouco mais de mil inscritos. Alguns poucos dias depois, quando o convidei para participar desta série de entrevistas, já tinha quase 5 mil. Nos poucos dias até eu enviar as perguntas, 10 mil e quando as repostas chegaram 18 mil inscritos!

Hoje, enquanto escrevo estas linhas e edito esta postagem do LQI, Raffael já caminha firme para os 25 mil. É um crescimento exponencial!

Para quem assiste seus vídeos, não é difícil entender. Ele tem um jeito carismático e sincero de falar do jogo, seja quando comenta suas partidas, muitas vezes enquanto as joga na internet, ou quando analisa uma partida de mestres, quando partilha seu conhecimento sobre o jogo com milhares de aficionados.

Gentilmente, ele aceitou responder a algumas perguntas do LQI sobre ele e seu trabalho no YouTube.

1) Raffael, fale um pouco sobre você, em especial aquilo que não tem a ver com xadrez. Bom eu sou gaúcho, moro na região metropolitana de Porto Alegre e tenho 35 anos. Gosto de tocar a minha gaita (acordeom) nos finais de semana e comer um bom churrasco. Sou casado há 10 anos com minha esposa Jenifer, sou um cara caseiro. Minha formação é técnico eletrônico industrial e trabalho nessa área há 15 anos.

2) Você conhecia o blog Lances Quase Inocentes (LQI)? Na verdade, eu não tinha conhecimento do blog, mas olhei algumas postagens recentemente e achei bem interessante. Por sinal, parabéns pelo belo trabalho! Estou certo que passarei a acompanhar os conteúdos.

3) Como você aprendeu xadrez e como esse jogo se tornou importante na sua vida? Tudo começou com o meu pai, Roberto Bairros. Quando receberam o primeiro soldo do exército, ele e um amigo fizeram uma vaquinha e compraram em um sebo um livro de xadrez. Era de bolso, mas tinha mais de duzentas páginas e ensinava todas as fases do jogo. Compraram também um pequeno tabuleiro e passaram a treinar. Aquele foi o primeiro livro de vários. Foi assim que ele trouxe o esporte para a família. Quando eu tinha 7 anos, ele me apresentou os movimentos das peças, as regras e noções do jogo. E isso mudou a minha vida. Eu me tornei um curioso pela literatura enxadrística e aproveitei que nós sempre tivemos muitos livros de xadrez em casa. Isso me ajudou durante toda essa trajetória em busca da melhoria do meu jogo. Desde o momento em que aprendi a jogar, soube que xadrez não era um simples jogo para mim. Passei a usar o meu tempo livre para esse esporte. Sempre gostei da parte estratégica e criativa do jogo. Após alguns anos, ficou ainda melhor. O xadrez passou a ser um hobby, ou seja, uma atividade muito prazerosa e divertida que eu tenho certeza que levarei por toda a minha vida. É o que ainda faço hoje, e é por isso que tenho um canal de xadrez. O tempo que passo com essa atividade é extremamente agradável e recompensador para mim. Vou continuar jogando e difundindo o amor por esse esporte, sempre que puder, assim como meu pai começou.

4) Você compete ou competiu regularmente em torneios ao vivo, ou prefere eventos e partidas online? Na realidade as duas coisas. Eu já competi muito em torneios ao vivo aqui no Rio Grande do Sul. Eu costumava jogar vários eventos quando ainda estava no ensino médio e tinha mais tempo livre nos finais de semana. Era muito divertido. Íamos sempre em família: meu pai, Roberto, e minha mãe Alcélia. Eventualmente até a minha avó, Francisca, ia junto. Conhecemos diversas cidades aqui do estado assim. Lembro que nessa fase eu era cadastrado na FGX, que é a Federação Gaúcha de Xadrez, e tinha rating – na época, era de 2190 ou algo assim. Contudo, após alguns anos esse rating da FGX foi extinto. Após o término do ensino médio e o início das minhas atividades profissionais, infelizmente não tive mais tempo para continuar indo aos eventos. Contudo, mesmo não indo mais a torneios presenciais eu mantive contato direto com o Xadrez através dos clubes na internet, onde me mantenho ativo e sempre aprendendo mais sobre o jogo.

5) Gerar conteúdo sobre xadrez é uma tarefa árdua, pois a audiência é bastante crítica e seletiva e o retorno ao tempo dedicado costuma ser baixo. Qual tua motivação para superar essas dificuldades e ter um hoje um canal consolidado de vídeos de xadrez? Na realidade eu não acho que a tarefa seja árdua, pois eu fico realmente feliz e satisfeito quando estou criando os conteúdos do canal. Essa atividade, para mim, é extremamente prazerosa e divertida. O contato com o público do YouTube é algo que eu gosto muito. Em geral todos são muito legais e eu gosto bastante de interagir diretamente com todos através dos comentários – que eu busco responder o máximo que eu posso.

6) Você é um consumidor de livros de xadrez, ou sua geração já usa aplicativos e vídeos como principal forma de aprender sobre o jogo? Eu me sinto um felizardo por estar em uma geração que fica bem no meio entre o avanço tecnológico da internet e dos computadores e o período quando não tínhamos tudo isso. Sendo assim, a minha origem de estudante de xadrez, como eu havia mencionado, foi através dos livros. E esse é um hábito que eu gosto muito e tenho até hoje. Porém, eu não estudo mais apenas com os livros, hoje em dia eu faço uso dos benefícios da tecnologia como cursos de xadrez online e o auxílio dos programas de xadrez para estudo.

Raffael Chess é um dos canais que mais crescem no YouTube.
Capa do Canal no TouTube

7) Por que um canal no YouTube e não um blog? A ideia do canal no Youtube está mais ligada à dinâmica do xadrez. Ou seja, eu quero jogar ao vivo e mostrar para outros jogadores que estão começando como o jogo pode ser divertido e interessante. Quero mostrar a parte criativa, estratégica e a emoção da luta de uma partida de xadrez, que são as coisas que mais me atraem no jogo. Gosto da parte analítica do Xadrez também e dos desafios, então no canal mostro grandes partidas de xadrez e crio desafios enfrentando grandes jogadores ou engines. Acredito que esse dinamismo é mais facilmente atingido através do vídeo e por esse motivo fiz essa escolha. Contudo, também quero no futuro criar um site ou um blog para ter outra forma de abordar o assunto com os espectadores.

8) Pode deixar uma mensagem final para os seguidores do teu canal e leitores do LQI? A mensagem que eu gostaria de deixar é que o foco de quem quer jogar xadrez não deve ser ganhar, ganhar, ganhar. Mas sim buscar no jogo aquilo que atrai você. Seja a parte estratégica, tática, criativa ou artística, DIVIRTA-SE jogando xadrez, pois, a partir do momento em que você passa a se divertir jogando xadrez, você nunca irá parar e isso te levará a um dia se tornar um grande jogador.

Raffael, obrigado pelas simpáticas repostas dadas e pelo tempo dedicado em respondê-las. Grande abraço

O supersticioso, se morrer, morre de velho

Josué era um ávido leitor de tudo quanto era conteúdo de xadrez. Gostava bastante de textos que combinassem análises de partidas com uma boa dose de lirismo.  Passaram por suas mãos e vistas livros como El Ajedrez de Torneo (que infelizmente precisou se esforçar para ler em espanhol pela ausência de uma tradução nacional), seu autor, David Bronstein, não se limitava a lançar variantes secas, mas sempre trazia algo além, em prosa. O livro Piense como un gran maestro, do Kotov, também cumpria bem esse papel, embora ali não se analisassem partidas completas.

A alegria de Josué foi grande quando ele encontrou num sebo o livro de crônicas de Hélder Câmara, intitulado Diagonais: crônicas de xadrez. Se havia um estilo mais agradável aos gostos de Josué era aquele usado nos textos daquele livro. O autor era um mestre com os trebelhos e com as palavras! Entendia tanto de tática e estratégia, quanto de nuances da vida humana. Ao correr os olhos sobre o índice, Josué logo percebeu que o mestre Câmara também tinha uma predileção pelo grande “Mago de Riga”, o ex-campeão do mundo Mikhail Tal.

Ao ler uma das crônicas, Josué foi literalmente às lágrimas, enlevado pelo simbolismo da partida, a derradeira do Mago, jogada poucos dias antes de sua morte. O que mais impressionou Josué foi o fato de que o último lance da última partida de Tal consistisse em retornar com o rei até sua casa inicial – rei um do rei – levando o adversário a abandonar a luta. “Homem, és pó e ao pó voltarás” escreveu Câmara ao lembrar o texto bíblico, e arrematou: “assim (…), Tal despedia-se da vida do xadrez (e …) do xadrez da vida”.

Profundamente impressionado, Josué passou algumas semanas sem tocar o tabuleiro, apenas lia e releia a crônica, fantasiando se Tal havia feito cada uma daquelas jogadas de sua partida final sabendo que ali acabaria tudo.

A deusa Caíssa gostava de fazer tratos com alguns homens, Josué sabia, e não duvidava que talvez até houvesse um céu só para enxadristas, onde deveria estar Bobby Fischer, que fora levado após somente 64 anos de vida, um ano completo para cada casa do tabuleiro. E, agora, Tal selar a sua vida com o enigmático retorno do monarca até a casa um do rei… Era muito estranho.

Com o tempo, porém, ele foi retomando sua rotina normal, a crônica e a partida continuavam com ele, mas tornara-se mais fácil pensar que tais mistérios não passavam de falsas relações que a fértil imaginação humana quer impor ao Acaso.

Josué já não era tão jovem, desde que se aposentara gostava de participar de todos os torneios que aconteciam em sua cidade, talvez como forma de compensar os anos que passara afastado em decorrência de afazeres profissionais e familiares. Agora, sempre que possível, estava em frente a um tabuleiro.

Meses após ler a crônica, momentaneamente esquecido dela, Josué jogava com as peças pretas uma partida de torneio e tinha diante de si uma posição vencedora, com xeque-mate a descoberto. Bastaria fazer um lance: rei um do rei – retornar seu rei para a casa inicial. O adversário estava pálido, certamente rezando para que Josué não visse o mate, mas era uma jogada muito fácil. Além do mais, qualquer outra jogada daria chance às brancas de igualar a partida. Com um sorriso retido a muito custo, Josué esticou a mão até seu rei e o segurou entre o polegar e o indicador, mas algo o interrompeu.

O adversário pensou que fora a Providência, porém era uma terrível dúvida que acometera Josué. E se ele também tivesse o mesmo destino de Tal? E se a quantidade de jogadas de sua vida estivesse determinada para se completar naquele dia, após o retorno do rei? “Homem és pó…”, em vez de lances, os versículos rondavam sua mente.

Não, não havia qualquer lógica. Que bobagem. E voltou a imprimir força à mão estática que segurava o rei. Lembrou-se, então, que seu adversário se chamava Miguel, e parou novamente.

Tal era Miguel também!

Estava com 64 anos, ainda queria tanto viver e jogar… Se houvesse um céu para enxadristas, certamente ainda não estava pronto para lá. Moveu o rei, já que havia tocado aquela peça, porém para a casa dois do bispo – xeque, mas não mate, permitindo alívio do monarca inimigo. As brancas acabaram vencendo, para alegria de Miguel, embora fosse Josué quem parecesse aliviado.

Ainda hoje, ele joga torneios pela cidade. A idade avança aos poucos, como peões no tabuleiro. Quem observar de perto suas partidas perceberá rapidamente seu segredo: Josué jamais retorna com seu rei até a casa inicial! Nem mesmo para dar (ou escapar de um) xeque-mate.

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Desafio aos leitores: que tal compor uma posição plausível – uma posição problema – para o arremate possível na partida entre Miguel e Josué, conforme narrado no texto? Os requisitos estão todos lá. Envie o diagrama ou o código FEN para rewbenio@lancesqi.com.br, publicarei uma coletânea dos problemas recebidos, devidamente identificados com seus autores.