Memórias de um enxadrista*

Há treze anos eu jogava minha primeira partida num torneio de xadrez. Tinha as peças brancas. Confiante, aventurei-me com “1. e4”, e fui surpreendido pela, então inédita, defesa Siciliana, “1. … c5”. Foi minha primeira derrota em torneios.

Desde então minha devoção ao jogo aumentou, voltei com afinco às páginas do Xadrez Básico, comecei a ter aulas, disputei outros torneios. Foi um ano dedicado a melhorar minha técnica na intricada arte das 64 casas. Ao final deste ano eu terminava o Campeonato Estadual Absoluto (de todas as categorias) num honroso (para mim) oitavo lugar, melhor colocação dentre os jogadores de minha idade.

Aquele foi um tempo de grandes descobertas sobre o tabuleiro: um pouco de aberturas, um pouco de meio-jogo, um pouco de finais de partida. Muitas vezes, nas metafóricas combinações do nobre jogo, incipientes lições de vida eram reveladas.

Passei toda a adolescência e início da vida adulta pensando quase que diariamente em alguma situação enxadrística. O xadrez fez parte de minha vida em ocasiões importantes: entrada no segundo grau e na universidade, vivência no exterior (onde também disputei torneios), primeira namorada, primeiro emprego, primeiro carro.

Mas, ironicamente, o próprio desenrolar da minha vida foi-me afastando do enxadrismo, as metáforas com o jogo foram rareando, até que, com tristeza, sinto-me hoje quase um estranho ao universo que ronda o xadrez. Se, por acaso, visitar uma sala de torneio qualquer em minha própria cidade, é bem provável que eu não conheça boa parte dos jogadores.

Vêm à mente, muitas vezes, imagens variadas: dos bons amigos que fiz nos torneios, das muitas derrotas, das vitórias importantes que me impulsionaram a continuar. Refaço mentalmente as variantes que tomei e que, pouco a pouco, levaram minha vida para cada vez mais longe dos tabuleiros.

Felizmente, quando parece que perdi os laços com o jogo dos reis, uma bela partida num livro ou na internet reaviva a velha chama, e sou novamente como o garoto que há treze anos descobria, com o rei inclinado, a eficácia da temida defesa Siciliana.

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*Texto de 2005

Deixem as Fake News longe do xadrez

Vivemos a era da disseminação de mentiras com cara de verdade. Mas, por favor, deixem o xadrez fora disso!

Emmanuel Lasker tem uma famosa frase sobre verdade e xadrez: “No tabuleiro de xadrez, a mentira e a hipocrisia não sobrevivem por muito tempo”.

Xadrez, de fato, é terreno para a busca da verdade, e muito de seu encanto vem do fato que, embora perante os olhos de qualquer um, ela fique tão escondida entre as peças e suas intrigas de cores alternadas.

Por esses dias, recebi de diversas fontes (inclusive de alguns enxadristas) uma triste mentira:

Fake News não têm poupado nem o xadrez

A imagem, muito famosa, mostra uma exibição de simultâneas realizada em 1920 pelo garoto prodígio Samuel Reshevsky (1911 – 1992). Na ocasião, Reshevsky enfrentou não somente 8, mas 20 adversários (nem todos na imagem) e, ao contrário da mentira divulgada, derrotou todos.

Fico imaginando as razões de quem criou a falsa informação e iniciou a corrente de falsidade, mas o fato que entendo ainda menos é o porquê de muitas pessoas passarem adiante… Algumas como uma interrogação (“isso é verdade?”), outros como quem manda uma piada (sem graça alguma).

Algumas simples verificações antes de propagar a imagem teriam detido sua proliferação (falta de cuidado que, aliás, tem sido comum e decisiva para o sucesso do espalhamento de mentiras em outros contextos da vida):

  1. Uma foto de um garoto que perde para mestres adultos no início so século XX seria algo tão incrível assim para merecer a posteridade?
  2. As feições desamparadas de alguns dos adversários na foto não servem de pista de que eles estão desconfortáveis (ou seja, perdendo)?
  3. As peças do tabuleiro não estão bem visíveis, mas há diversas fontes, como a Wikipédia, que falam exatamente do contexto da foto e do desfecho das partidas.
Nota na Wikipédia sobre o tema.

A foto original foi feita durante uma seção de partidas simultâneas do jovem prodígio contra um grupo de 20 fortes jogadores parisienses. A disputa ocorreu no Club des Echecs du Palais Royal no dia 16 de mai de 1920 (o pequeno Samuel, portanto, ainda não havia completado 9 anos de idade).

Relatos efusivos da imprensa francesa da época reportam que ele venceu todos os 20 adversários, mas apenas um das partidas, contra Herzfeld, foi preservada.

Para fazer justiça a Samuel Reshevsky, fica o registro de que era dotado de extraordinário talento para o xadrez, desde muito cedo descoberto.

Seus pais (extremamente pobres) foram convencidos por um “empresário” para que ele se apresentasse (a dinheiro) perante adversários mais velhos em exibições por várias partes do mundo, a começar pela Europa. E houve muitas, além de Paris, citada acima, até que a família seguiu para os EUA, onde acabou se instalando definitivamente.

Reshevsky (lado esquerdo em pé), em 1921, prestes a enfrentar 20 jogadores em Cleveland (EUA).

Autoridades norte-americanas tiraram o jovem Reshevsky da tutela de seus pais, pois foi considerada abusiva a forma de explorar os talentos do menino, que sequer frequentava a escola.

Sua tutela foi dada a um milionário filantropo que cuidou da educação do jovem até sua graduação na Universidade de Chicago em 1934.

Após a graduação, Reshevsky voltou a tomar parte em competições de alto nível, por exemplo, vencendo o Torneio de Margate em 1935 à frente de Capablanca (a quem venceu no confronto individual).

Apesar de nunca ter sido um profissional do xadrez em tempo integral, Reshevsky foi um sério candidato ao título mundial até o final dos anos 1960, considerado por muitos o melhor jogador do mundo fora da URSS até a chegada de Fischer.

No xadrez, e muito mais na vida, a verdade é muito preciosa. Pena que uma óbvia mentira, como a citada, possa demorar tanto para ser desmentida e seu estrago possa ser irrecuperável.

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Um mate relâmpago no campeão

Retornando à série ‘Posições mais famosas da história do xadrez’ com uma partida inusitada que já vem sendo chamada de “Imortal Brasileira”.

Magnus Carlsen é um homem de seu tempo e sabe usar a internet para promover o jogo que ama e que o tornou famoso. A pandemia da covid-19 deu ao xadrez online uma dimensão que jamais havia tido, e o campeão mundial soube aproveitar (mas não apenas ele, como veremos).

Além dos torneios online que organiza, com frequência ele dá a fortes jogadores de blitz espalhados pelo mundo a chance de enfrentá-lo. Numa dessas partidas, Carlsen enfrentou o GM brasileiro Luis Supi. A partida se tornou um clássico instantâneo, não só pela raridade de se ver Carlsen derrotado em poucos lances, mas por seu desfecho genial! Sem faltar, claro, no aparecimento duma chuva de “memes” e piadas, por causa das reações de Carlsen.

Supi (São Paulo, 1996 – ) é o 14º GM brasileiro, título homologado em 2018. Atualmente é o #2 do Brasil na lista ativa de rating FIDE, atrás apenas do GM Rafael Leitão.

Na posição acima, Supi está com uma peça a menos, mas tem absoluta iniciativa, e começa a demonstrar a Carlsen que não é um mestre qualquer: 16. Ta2 um lance de aparência calma, mas que traz a incômoda ameaça de dobrar as torres na coluna ‘a’. 16 … Df5 Stockfish prefere 16 …De6, mas a verdade é que as pretas já não têm muitas opções. 17.Tfa1 Rc8 Apenas o triste 17 … Db1+ conseguiria atrasar um pouco a derrota. Supi arremata com um lance que até a engine demora um pouco a encontrar! Um sacrifício de dama no melhor estilo ‘Lewitsky × Marshall’, só que ainda mais belo: 18.Dc6!! Carlsen olha atônito e precisa de alguns centésimos de segundo para soltar um “Outch” e fazer uma careta que invejaria até mesmo o velho Ogro de Baku. Depois abandona, pede revanche e segue com elogios ao lance do brasileiro.

Xadrez: Carlsen atônito
Carlsen: um campeão atônito!

Segue abaixo a partida completa no visor:

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Xadrez não é o jogo da imitação

Apesar de comum entre iniciantes no xadrez, repetir as jogadas do adversário não é uma boa ideia. Capablanca nos ensina magistralmente.

Quando uma partida de xadrez é iniciada, existe um perfeito equilíbrio, uma exata simetria. Não fossem as cores alternadas de tabuleiro e peças, os dois bandos pareceriam exata imagem especular um do outro. Só há uma diferença, alguém tem que começar a partida, e esse pequeno desequilíbrio se revela crucial!

A convenção é que as brancas começam, o que deixa o exército preto com a necessidade de compensar o fato de estar sempre um passo em atraso.

Muitos iniciantes, assim, têm uma ideia que parece promissora, principalmente contra jogadores bem mais fortes: repetir exatamente as jogadas do adversário.

A princípio, parece uma boa ideia e, na infinitude de possibilidades para uma partida de xadrez, deve haver pelo menos milhares de situações em que se possa chegar ao empate, mas o fato é que manter a simetria em fases cada vez mais avançadas da partida quase sempre amplifica a vantagem de quem está um lance à frente.

Segue um exemplo simples que, apesar de inverossímil, mostra de cara que não é verdade que SEMPRE repetir o lance do branco leva o preto ao empate:

O caso acima não será visto numa partida real, porém ilustra bem o risco de sempre manter a posição simétrica, postergando e amplificando a vantagem das brancas de ter o primeiro lance: quem tem a vez de jogar pode estar a apenas um lance do mate!

Um segundo exemplo mais realista e ilustrativo vem duma partida centenária jogada pelo ex-campeão mundial José Raul Capablanca em 1918, provavelmente numa sessão de simultâneas. Seu adversário (cujo nome foi não preservado, daí o uso de N.N.) achou seguro repetir os lances do lendário campeão, até receber uma dura lição:

O xadrez não é um jogo contra o espelho, como nos lembram as diferentes cores dos exércitos; enquanto no espelho estamos em frente a nós mesmos, no xadrez, há sempre alguém com ideias próprias do outro lado do tabuleiro !

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LQI: 10 anos quase inocentes!

Não é sempre que se comemora um aniversário de uma década de um blog de xadrez! É com muito orgulho que faço isso no dia de hoje.

Quando eu fiz a postagem #1 deste blog, em 31/05/2010, certamente não imaginava até onde ele me levaria.

1ª postagem do blog LQI

A ideia inicial foi mesmo quase inocente: postar partidas minhas para mostrar para alguns amigos próximos. Era meu retorno ao xadrez competitivo após muitos anos, e o blog me pareceu uma boa ideia.

Com o tempo, porém, o velho ímpeto de escrever (iniciado no longínquo projeto ‘Quase Escritores‘, no qual eu e amigos publicávamos textos não relacionados ao xadrez) foi reaparecendo.

Por que não abrir um pouco o leque?

Passei a escrever textos de natureza variada, quase sempre ligados ao jogo de xadrez: comentários sobre eventos locais, nacionais e internacionais; entrevistas; atualização do rating FIDE/CBX; regras e curiosidades; estudos variados, como o da famosa série invicta de Fischer entre 1970 e 1971 etc.

Acho que vale indicar abaixo algumas das postagens mais lidas do LQI segundo as estatísticas do blog:

Diferentes apresentações do blog LQI
Algumas das “caras” do blog LQI ao longo dos últimos 10 anos

Um belo dia, já com 5 anos de blog, escrevi uma pequena história, um conto, ‘Peça tocada…‘ que teve uma acolhida muito positiva junto a enxadristas e não enxadristas. A satisfação foi muito grande, o que me deu um novo ânimo para continuar.

O hábito de buscar nuances do xadrez que pudessem explicar o cotidiano me levaram de blogueiro a escritor, com a publicação de ‘Que Peça eu Quero Ser?‘ em 2017, mais um trabalho que renovou as forças e me trouxe grande alegria.

Os próprios textos do blog serviram de base para dois de meus ebooks, e espero que outros possam vir como filhos dessa experiência despretensiosa que agora completa uma década.

O blog me colocou em contato com pessoas maravilhosas do mundo das 64 casas, como o Fernando Sá do blog Reino de Caíssa, o gentil jornalista pernambucano Evaldo Costa, que me concedeu a palavra em um dos episódios de seu podcast sobre xadrez mantido pela Folha de Pernambuco, muitos dos principais youtubers brasileiros (que hoje são a tendência em conteúdo de xadrez para internet), além de muitos outros companheiros que compartilham desse amor pelo xadrez. Todos esses, eu só pude conhecer por causa deste blog .

O LQI tornou real e corriqueiro para mim o antigo lema do CXEB: “leva o xadrez, traz o amigo”.

Só posso agradecer àqueles que acompanham este blog, novos ou antigos leitores, que têm me ajudado a manter este espaço por tanto tempo. Espero ainda poder oferecer textos interessantes de vez em quando, quem sabe por mais 10 anos!

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