Mais um ponto sobre o xadrez na URSS

Estou lendo lentamente (primeiro para demorar a acabar, segundo por escassez de tempo mesmo) o excelente livro ‘White King and Red Queen – How the cold war was fought on the chessboard’ (que pode ser traduzido como ‘Rei Branco e Rainha Vermelha – Como a guerra fria foi lutada no tabuleiro’), de autoria do jornalista Daniel Johnson, publicado pela primeira vez em Londres, Inglaterra, em 2007, pela Atlantic Books.

Capa da edição que estou lendo: Kasparov argumenta algo durante um final contra Korchnoi
(possivelmente a regra 10.2)
Até onde eu li, o livro tem tratado do xadrez na URSS, como ele se tornou um instrumento político de propaganda, das intrigas, dos mestres que foram beneficiados e daqueles que caíram no ostracismo por serem insuficientemente alinhados com os ideais do partido comunista que governava a União Soviética.
Muito se fala sobre a massificação do xadrez promovida pelo partido, o que permitiu que a URSS alcançasse hegemonia mundial a partir do primeiro título mundial de Botvinnik. Porém, hoje li duas passagens no livro que mostram o outro lado, a visão dos cidadãos comuns soviéticos, sobretudo as crianças, mostrando o porquê de ser tão interessante para eles investir seu tempo no aprendizado do jogo. 
Segue o primeiro trecho:

“Unlike the arts, humanities and sciences, which were forced to interpret everything through the prism of Marxism-Leninism, such eclecticism was permited only in chess. Chess could boast a genuine marketplace of ideas that was virtually unique in Soviet intellectual life. In a society where mind-numbing uniformity was imposed on leisure as well as work; where the press and broadcasting largely consisted on propaganda; where literature and the arts were censored; where alcohol and tobacco were the only luxuries; where life for most people was lived in the interstices between fear and tedium – in such a society, chess was an oasis for millions thirsting for mental stimulation.”

O trecho pode ser traduzido assim:

“Ao contrário das artes, humanidades e ciências, que foram forçadas a interpretar tudo pelo prisma do Marxismo-Leninismo, tal ecletismo (de ideias) foi permitido a apenas no xadrez. O xadrez poderia se gabar de constituir um genuíno mercado de ideias que foi praticamente único na vida intelectual Soviética. Numa sociedade onde uma tediosa uniformidade foi imposta tanto ao lazer como ao trabalho; onde a imprensa e as radiodifusões em grande parte consistiam em propaganda (do governo); onde a literatura e as artes eram censuradas; onde o álcool e o tabaco eram os únicos luxos; onde a vida para a maioria das pessoas era vivida nos interstícios entre o medo e o tédio – em tal sociedade, o xadrez era um oásis para milhões de pessoas sedentas de estimulação mental.”

Segue o segundo trecho, este mais específico para aqueles que almejavam (se tinham capacidade) tornar-se profissionais do jogo na URSS:

“The lot of a chess professional was an enviable one: stipends were higher than average wages, but the biggest lure was the likelihood of foreign travel and foreign-currency earnings. In a centraly planned economy, from which choice had been banished, such opportunities conferred almost unimaginable privilege.”

Que pode ser traduzido assim:

“A situação financeira dum profissional do xadrez (na URSS) era invejável: salários eram mais elevados do que a média, mas a maior atrativo era a possibilidade de viajar ao exterior e auferir ganhos em moeda estrangeira. Numa economia centralizada, que bania qualquer opção, tais oportunidades constituíam um privilégio quase inimaginável.”

Assim, como se diz por aqui, juntou a fome com a vontade de comer: o governo incentivava o xadrez e impunha a massificação, e a população via como uma das melhores atividades disponíveis e uma das melhores profissões! Apesar de não ser uma situação fácil, pelo menos resta algum consolo no fato de o xadrez ter servido para lançar alguma luz sobre a vida de milhões de pessoas submetidas a um regime totalitário. Pelo menos, dentro das 64 casas, podia-se pensar livremente, ainda que por apenas alguns lances.

Xadrez e Trapaça: Soviéticos agiam em Cartel nos Torneios de Candidatos até 1978?

O fato de ser engenheiro, e ter tomado gosto pela investigação científica durante meu mestrado, leva-me a ter contato com variados estudos e artigos, a maioria deles estritamente no ramo da engenharia, mas, algumas vezes, caem em minhas mãos alguns relacionados com uma de minhas maiores paixões: o xadrez.

O artigo em questão tem o seguinte título em inglês: “Did the sovietes collude? A statistical analysis of championship chess 1940 – 1978” de Charles C. Moul e John V.C. Nye publicado em 2009 no nº 70 do periódico científico internacional Journal of Economic Behavior & Organization. Em português, pode ser traduzido assim: Os soviéticos agiram em cartel? Uma análise estatística de campeonatos de xadrez entre 1940 e 1978.

O trabalho trata de analisar dados estatísticos de torneios no período 1940-1978 envolvendo soviéticos e não-soviéticos em eventos internacionais (sob tutela da FIDE) e comparando com torneios no mesmo período jogados apenas por soviéticos (como os campeonatos da URSS). O objetivo é saber se os soviéticos agiam como um cartel em eventos internacionais, empatando rapidamente partidas entre eles e jogando para valer contra os demais. Os autores argumentam que essa estratégia, em torneios longos do tipo todos-contra-todos (abreviarei para T-T) traria melhores resultados aos soviéticos, pois estariam mais descansados (os autores estimaram uma diferença equivalente em rating de 42,8 pontos em favor dos jogadores mais descansados).

Alguns resultados obtidos por eles chamam bastante a atenção e fortalecem a hipótese do cartel para o período investigado (1940 – 1978):

  • Em eventos FIDE do tipo T-T os soviéticos empataram em média 60% das partidas contra seus compatriotas, enquanto que a média geral de empates entre 2 não-soviéticos ou entre um soviético e um não-soviético foi de 50%;
  • Em média, apenas 46% das partidas entre soviéticos em eventos fechados na URSS foram empates, contra 60% em torneios FIDE;
  • Em média, as partidas empatadas entre soviéticos em eventos FIDE foram 8 lances mais curtas que empates entre soviéticos em eventos fechados na URSS;
  • Em torneios FIDE do tipo mata-mata (ou nocaute, KO), não se percebe diferença significativa na quantidade de empates: soviético x soviético (56,2% de empates) e soviético x não-soviético ou 2 não-soviéticos (55,6% de empates).

Após esta primeira comparação, foram analisados os Torneios de Candidatos de 1950 a 1962. Os autores calcularam as probabilidades de vitória de cada participante desses torneios sob 2 hipóteses:

  • A – os soviéticos agiram em cartel, empatando partidas entre eles a fim de “guardarem forças” contra os demais jogadores;
  • B – os soviéticos não agiram em cartel.

Para realizar essa comparação, em cada hipótese (A e B), 10.000 simulações de resultados foram feitas, e calcularam-se as médias dos resultados individuais nessas simulações (no caso A, os resultados entre soviéticos foram simulados como empates; no caso B foram tomados aleatoriamente). No caso B, o resultado médio das simulações foi muito mais coerente com os ratings estimados no site Chessmetrics por Jeff Sonas para os jogadores nas épocas em que os torneios foram realizados.

Segundo os autores, o evento no qual a hipótese do cartel soviético teria maior impacto no resultado seria no famoso Torneio de Candidatos de Zurich 1953, um longo evento T-T de dupla volta em que cada jogador disputou 28 partidas. As chances de vitória de um soviético (eram 9 de um total de 15 participantes) sob a hipótese de cartel foi estimada em 75,7% contra 48,5% de chances se a hipótese fosse falsa.

O Torneio de Candidatos de Curaçao 1962, famoso pela denúncia de Fischer sobre a forma como os soviéticos controlavam o resultados do torneio (e que aparentemente foi uma das motivações para o estudo feito por Moul e Nye) também foi analisado. O torneio contou com 8 jogadores (5 soviéticos) que se enfrentavam todos contra todos 4 vezes! A chance de vitória de um soviético sob a hipótese de cartel foi estimada em 93,7%, contra 80,8% de chances caso a hipótese de cartel seja falsa.

Fischer × Kortchnoi em Curaçao 1962
(fonte: chessbase.com)

Os autores concluem que sua análise, a primeira do tipo a usar forte base estatística para analisar o assunto (segundo eles), apenas reforça a ideia generalizada e facilmente compreensível de que os soviéticos, em eventos no exterior, deveriam estar sujeitos a algumas pressões para agir como um time e que assim o faziam. Eles não dizem nem sim, nem não à pergunta do título, mas afirmam que a probabilidade de ocorrerem os resultados observados na prática sem nenhum tipo de cartel, ou outra estratégia de grupo dos soviéticos, seria muito menor.

Eles deixam claro que, obviamente, este não é o único fator que levou à hegemonia da URSS no xadrez naquele período, mas que, aliada à notória força dos grandes mestres soviéticos, a estratégia de cartel tornava quase impossível a um não-soviético tornar-se o desafiante oficial ao título mundial. Por exemplo, enfatizam o caso de Zurich 1953, quando Reshevsky era o favorito com 28,6% chances de ser o campeão caso não houvesse cartel, mas que, havendo cartel, suas chances cairiam bruscamente para 14,8%. No final, sabemos que o campeão foi Smyslov, com Bronstein e Reshevsky empatados em segundo.

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