Uma vaca, um sonho, várias lições

Fatah e Jacqueline (fonte)
Não é comum falar de cinema neste blog, talvez porque o xadrez e a sétima arte poucas vezes dão as mãos, apesar do deleite que causam quando se encontram.

A única vez que me lembro de cruzar os assuntos foi quando expliquei o porquê do nome do blog, que é uma referência a um conhecido filme sobre xadrez.

Desta vez, entretanto, o xadrez ficará um pouco de fora, para dar espaço a um dos melhores filmes que vi na vida: A incrível Jornada de Jacqueline (La Vache, no original em francês).

O filme nos apresenta Fatah Belabes, um simples agricultor que mora num quase pré-histórico vilarejo argelino e que tem uma verdadeira paixão por uma vaca, chamada carinhosamente de Jacqueline. Fatah é ridicularizado em seu vilarejo pela dedicação ao seu animal, mas isso em nada diminui a vontade de realizar seu grande sonho: levar sua vaca ao salão da agricultura em Paris!

Como prêmio por sua insistência ferrenha por anos a fio, o salão de agricultura, enfim, concede um convite especial para que Jacqueline concorra na categoria Gado Taurino. Só tem um problema: os custos da viagem seriam por conta dele. Começa aí uma divertida e sofrida viagem do camponês e seu animal, partindo do vilarejo africano até a capital francesa com o plano de fazer a maior parte do percurso a pé!

Em sua jornada, Fatah conhece diversas pessoas que oferecem ajuda, tocadas pela simplicidade dele e pela dimensão do seu sonho, ao mesmo tempo tão simplório na finalidade e tão ousado na execução. Aos poucos, porém, percebe-se que é Fatah que lhes entrega muito mais, tal qual um Midas esfarrapado e alegre.

O bom humor constante do filme certamente nos previne das lágrimas, e nos lembra que não é preciso ser vazio ou superficial para ser engraçado, como podem pensar comediantes inferiores. Os grandes palhaços sempre escondem a lágrima com o riso, enquanto, sob a aparência trivial tratam de temas importantes e sérios.

O filme nos lembra de diversos valores universais que são vitais em nossa vida: a sinceridade, a bondade, a humildade, a persistência, o valor do perdão, o poder avassalador dos sonhos e como vale a pena lançar-se a eles.

Fatah e Jacqueline nos recordam o simples peão que sonha em chegar aos confins do tabuleiro e ser coroado. Ao dar os corajosos passos à frente, sem garantia nenhuma que conseguirão, é que esses peões movem o jogo, e é assim que nós, os homens, movemos o mundo.

O Xadrez em Serena


O livro Serena (Ian McEwan, 2012) traz como protagonista uma moça que ” … era matemática, ex-enxadrista e (…) que precisava de consolo”.

O xadrez é citado apenas poucas vezes, quando, por exemplo, a narradora relembra seus tempos como capitã da equipe de xadrez de sua escola.

Certamente o livro não seria assunto deste blog não fosse por outa passagem, talvez a última a mencionar o xadrez, quando Serena está sendo entrevistada para uma vaga burocrática no serviço secreto britânico:

“… apliquei ao meu autorretrato uma demãozinha de enxadrismo, sem mencionar que não jogava havia três anos. Ele me perguntou se eu conhecia o final da partida entre Zilber e Tal em 1958. Eu não conhecia, mas podia muito bem falar da famosa posição de Saavedra.”

Assim como Serena, eu não conhecia a partida de Tal, mas lembrava de já ter visto a posição de Saavedra. Quando li Serena, eu já havia iniciado a série sobre posições famosas e logo achei que poderia ser uma boa candidata. Fui atrás de conhecer a história da partida e atestar a fama da posição (tinha que ser famosa, para aparecer assim, nominalmente, numa obra literária). Infelizmente, nos dois livros de Tal que consultei não se menciona a partida, e na internet há pouca coisa. 

A referência mais esclarecedora foi no site chess.com, onde há uma página com a posição e fala-se que é oriunda da “clássica partida” entre Zilber e Tal em 1958. Em seguida, pede-se ao leitor que encontre a ideia vencedora. Segue a posição mostrada no chess.com:
Zilber – Tal, 1958
Posição após 42. … Rg4.
Não vou me arriscar a dizer que a posição acima é que confere fama à partida, ou se é este o final a que se referiu o autor, mas foi o melhor que pude apurar. Outra fonte de informação seriam os comentários à partida que alguns internautas fazem no site chessgames.com. Mas lá não houve grande ajuda.

Um dos poucos comentários diz que Zilber foi caracterizado no filme Lances Inocentes, sendo o senhor que colocou uma placa numa mesa de xadrez no Washington Square Park dizendo que venceu Tal em 1953 e cobrando 5 dólares por uma foto ou uma partida rápida:

Cena de Lances Inocentes (1993)
Porém, no chessgames.com não consta nenhuma vitória de Zilber contra Tal em 1953 (houve duas vitórias, uma em 1952 e outra em 1958 – esta que foi citada em Serena). Por outro lado, é praticamente certo que Zilber era frequentador das mesas de xadrez do Washington Square Park na década de 1980, e provavelmente, no filme, apenas houve erro da data da vitória.

A partir do diagrama acima, Zilber venceu Tal com as seguintes jogadas: 43. Te7 Rf5 44. Tf7 Td6 45. Bc5 Tf6 46. Tf6 Rf6 47. Rf3 Rf5 48. Bf8 Rg6 49. Rg4 h5 50. Rf3 Rf5 51. Be7 g4 52. Re3 Re6 53. Bd8 Re5 54. Bh4 1 – 0.

Para completar, a posição de Saavedra (como Ruy Lopez, também um padre ) é um belo estudo no qual Rei e Peão vencem Rei e Torre:

Estudo de Saavedra. Brancas jogam e ganham.
A sequência vencedora é: 1. c7 Td6+ 2. Rb5 Td5+ 3. Rb4 Td4+ 4. Rb3 Td3+ 5. Rc2 Td4! (um último recurso das negras) 6. c8 = T!! (não 6. c8 = D, pois seguiria 6. … Tc4+ 7. Dc4 e empate por afogamento do Rei negro) 6. … Ta4 7. Rb3 com ameaça de mate e da torre ao mesmo tempo.

As duas posições são, portanto, bastante distintas. A de Saavedra é indiscutivelmente famosa, a outra pede mais pesquisa, mas talvez ainda renda uma postagem aqui, afinal, derrotas de campeões mundiais sempre dão no que falar!

Por que ‘Lances Quase Inocentes’?

Muitas vezes me perguntam sobre a escolha do nome deste blog. Fora dos círculos enxadrísticos fica um nome meio estranho mesmo, aliás, pouco tem a ver com xadrez, à primeira vista. Porém, quase todos que jogam ou jogaram xadrez, logo percebem a associação.


Em 1993, lançaram um filme muito bom sobre xadrez, chamado “Lances Inocentes” na versão em português do título, mas que no original se chama “Searching For Bobby Fischer” (Procurando por Bobby Fischer).


Trata-se da história real dum garoto americano, Joshua Waitzkin, que mostra um incomum talento para o jogo de xadrez, apesar de nenhum incentivo aparente em casa, já que seus pais não jogavam. E muitos passam a apostar nele como o próximo Bobby Fischer.

Lá nos Estados Unidos, que foi hegemônico no xadrez mundial na década de 1930, o xadrez só foi redescoberto pelas massas após o fenômeno Bobby Fischer, o excêntrico e genial grande mestre que em 1972 se tornou o primeiro ocidental a se tornar campeão mundial, após longo QR domínio soviético sobre o jogo. Só que, depois disso, Fischer desapareceu do mapa, por assim dizer. Não jogou mais torneios, nem partidas sérias, não aceitou defender seu título contra o novo desafiante oficial oriundo dos duríssimos torneios classificatórios, o soviético Anatoly Karpov, em 1975, e deixou de ser o campeão oficial desde então. Fischer abandonou este mundo em 2008, curiosamente, aos 64 anos de idade.

Assim, após provar do gosto da vitória, e ver um aumento súbito no número de praticantes do jogo, o xadrez dos Estados Unidos se viu numa busca tácita daquele que seria o próximo Fischer, daí o nome original do filme.

O título em português capta outra faceta da história, que mostra um menino que, apesar de talentoso, diferencia-se do ídolo de seu país, por ser quase bondoso com seus adversários, apesar de vencer quase todos.

O garoto passa certa inocência quando joga, um estilo ainda não maculado pelos vícios de anos de torneios, pela ânsia de ganho de pontos de rating e títulos. O xadrez, para ele, ainda se mostra como é: o maravilhoso mundo de descobertas, um fim e não um meio, um pouco da luz que nos é dada a enxergar em meio a tanta escuridão.

Fica a dica: quem não viu, procure ver!