Xeque ou cheque?

O xadrez tem um poder arrebatador sobre muitas pessoas, algumas enamoram-se do jogo pela vida inteira, outras vivem somente uma intensa paixão que se apaga com o tempo (ou com as derrotas).

O grau de amor pelo jogo nem sempre equivale ao grau de competência. O grau máximo de competência no xadrez é simbolizado pelo título de Grande Mestre Internacional (GM) que ao longo da história tem sido alcançado por uma ínfima parcela da humanidade. Um título assim deveria garantir uma longa e feliz vida nos tabuleiros, certo?

Infelizmente não tem sido o caso.

Cada vez mais jogadores de alto nível têm abandonado o xadrez competitivo como forma de sustento e partido para outras atividades, às vezes até mesmo outros jogos, que conferem uma renda mais estável. Para os aficionados parece um grande desperdício, um talento mal alocado, mas os enxadristas também estão submetidos à mesma realidade dos demais mortais: é preciso um trabalho “normal” que ofereça uma renda viável, não somente para a mera sobrevivência, pois, como sabemos, o enxadrista também está sujeito à pirâmide de necessidades de Maslow.

No recente livro The Rookie: An Odyssey Trough Chess (and Life) (ainda sem título no Brasil), o autor Stephen Moss (jornalista e enxadrista amador) fala bastante do dilema do GM moderno. Na prática, somente aqueles que conseguem manter-se com rating acima de 2700 (atualmente cerca de 40 jogadores no mundo inteiro) têm chance de receber convites (remunerados) para torneios de elite com boa premiação, recebem ofertas de patrocínio e, assim, não precisam dividir seu tempo com atividades como dar aulas ou escrever artigos, podem focar todo o tempo e energia em melhorar seu jogo. Fora dessa pequena elite, as demandas financeiras acabam por afastá-los da competição e, muitas vezes, até do jogo!

Há atividades muito bem remuneradas que são ideais para a mente ágil de um GM, o mercado financeiro é uma delas (inclusive procura novos talentos entre os enxadristas). Numa pesquisa rápida, pelo menos três Grandes Mestres têm destacada carreira como especialistas em finanças: Kenneth (‘Ken’) Rogoff (EUA, último rating 2505), Patrick Wolff (EUA, último rating 2564) e Pascal Charbonneau (CAN, último rating 2505). No Brasil, podemos citar o Mestre Internacional Marcos Paolozzi (último rating 2410), cotado a ser GM e que já esteve entre os 400 melhores do Mundo, tomou a mesma decisão!

O que esperar de um GM que abandona o jogo por outra atividade? Acho que todos têm grandes chances de sucesso. São pessoas de elevada capacidade mental, determinadas, e que gostam muito de vencer. Ken Rogof, por exemplo, tornou-se um dos mais respeitados economistas dos EUA, professor de Harvard, escritor e diretor de pesquisa do FMI. Ainda joga informalmente, inclusive contra Magnus Carlsen!

O xadrez perdeu um GM, o mundo ganhou um grande economista!

Como consolo, o xadrez também vê novos talentos surgindo, como o indiano Rameshbabu Praggnanandhaa (o mais jovem Mestre Internacional da história, aos 10 anos de idade) que ainda tem chances de bater o recorde de Karjakin de mais jovem GM da história. Enquanto são jovens, eles podem dedicar-se aos mistérios do jogo e deleitar os aficionados com suas fantásticas ideias; para eles, o mundo ainda é imensamente mais simples que um tabuleiro com algumas peças sobre ele.

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Xadrez x Futebol em tempos de Copa do Mundo na Rússia!


Nos grupos de discussão sobre xadrez é tolerado que apenas um assunto se intrometa algumas vezes: o futebol! Ainda mais agora, durante a Copa do Mundo da Rússia, a terra do xadrez!

Assim, não é de se estranhar que, em meio a comentários de torneios, problemas de mate em três e outros assuntos típicos do meio enxadrístico, apareçam provocações futebolísticas (ainda que rapidamente censuradas pelo administrador do grupo, que levanta um cartão amarelo).

Num dos grupos, apareceu um jogador que também é árbitro tanto de xadrez como de futebol! Foi o suficiente para aparecer uma pergunta sobre a eterna polêmica entre “mão na bola” × “bola na mão”. Ao ler a excelente explicação do colega, pensei numa analogia com o xadrez:  “mão na bola” é “peça tocada, peça jogada”, mas “bola na mão” é “j’adoube“!


Haveria mais alguma analogia? Fiquei pensando depois (certamente eu não fui o primeiro). Se o xadrez é a vida em miniatura e o futebol é uma caixinha de surpresas, poderia encontrar mais coisas em comum.

Os esquemas táticos podem ser comparados às aberturas: o 1-2-7 é o Gambito do Rei, o 4-4-2 é a Ruy Lopez, o “Carrossel Holandês” é o Ataque Fegatello, o 4-5-1 é o Sistema London; e por aí vai.

Há também clara analogia entre as peças no tabuleiro e as posições dos jogadores em campo: os peões são a zaga, os cavalos são os volantes, as torres os laterais, os bispos jogam no meio-campo e a dama é a artilheira. O rei, claro, fica no gol! Até o enxadrista tem lugar na analogia: ele é o técnico da equipe (mas, graças a Deus, é bem menos xingado).

Se tem uma coisa que não deu para comparar entre xadrez e futebol foi a torcida. Neste quesito são diametralmente opostos: ao redor do gramado estão numerosos e barulhentos torcedores; ao redor do tabuleiro, quando muito, se reúnem alguns silenciosos perus (mães, namoradas, namorados e afins não costumam aparecer).

Mas quando o assunto é quem foi melhor do que quem, aí fica tudo parecido de novo! Esses dias, num outro grupo, voltou a eterna polêmica: quem foi melhor, Fischer ou Kasparov (ou outro)? Apaixonadas razões foram levantadas por fãs incansáveis de um e de outro, fatos citados, especulações lançadas, números debulhados! A polêmica nunca termina. Aí eu lembrei do futebol de novo: Fischer é Pelé, Kasparov é Maradona!

Pra quê fui falar…?

Alguns protestaram, pediram para trocar os pares da comparação, outros falaram de Neymar, Zico, Di Stéfano, Puskas, Leônidas e até Biro Biro! La Bourdonnais foi comparado a Garrincha, o injustiçado, num dos poucos momentos de concordância.

Alguém perguntou, malicioso: “Se Kasparov é Maradona, qual foi o gol de mão?”. Lembrei, então, do episódio contra Judit Polgar, quando ele soltou a peça e depois voltou seu lance; mas fez tudo isso com sua própria mão, jamais alegou ser a de Deus!

Assim, do nada, percebi que se quiser, posso passar horas falando de semelhanças entre os jogos: perder um pênalti é como não ver um mate em um, o impedimento é semelhante a quando uma peça está cravada, a grande área é a ala do rei, os peões protegendo o rei no roque são a barreira das faltas etc.

São tantas semelhanças que talvez até fosse pertinente, numa licença poética, alterar a célebre frase do Dr. Tarrasch (poderia também ter sido do Dr. Sócrates): o xadrez, como o amor, como a música, (como o futebol) tem o poder de fazer os homens felizes!

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Relembranças, ou um passeio até o centro de Fortaleza

Há um autor cearense, já falecido, de cujos textos gosto muito: Milton Dias. Conheci suas crônicas na época dos estudos para o vestibular da Universidade Federal do Ceará (UFC), que incluíra o livro Relembranças na lista de leitura obrigatória. Milton havia sido professor da UFC.

O estilo dele logo me cativou. Falava muito da cidade de Fortaleza, uma Fortaleza antiga para mim, mas que parecia tão próxima. Talvez por causa das ruas da cidade pelas quais andava sempre, sobretudo quando fui aluno do Colégio Militar de Fortaleza e costumava ir a pé até o centro em trajetos muitas vezes cobertos pelas crônicas daquele mestre do relembrar.

A nostalgia dos textos também contribuiu para a minha identificação; de algum modo eu me sentia presente ao ler as passagens em que contava seu amor a Fortaleza, suas reminiscências de estudante, de professor e de homem solitário: foi um cronista da saudade.

Para mim, era tempo de vestibular, e parecia que todas as decisões para a vida eram tão urgentes e definitivas, e era tão forte a sensação de divergência com a vida que levara até então, que ler os relatos tão bem escritos e sinceros de alguém que havia passado por tanto do que viria depois serviu como um farol, a iluminar o caminho a frente. Ajudou a colocar em perspectiva o presente como ele era de fato e reduziu enormemente a carga da ansiedade.

Creio que foi naquela época que a paixão pela leitura se tornou mais forte.

Um de seus textos, Viagem à Praça do Ferreira, conta como ele fizera, num certo sábado anos antes, quase o mesmo trajeto que eu fazia sempre. Saiu na Av. St Dumont, já na altura do Colégio Justiniano de Serpa (sua casa ficava na Rua Cel. Ferraz), em direção à praça. O motivo do passeio? Ir até uma livraria. Foram tantas as distrações e interrupções no caminho, que quando chegou ao destino já era meio dia, hora do almoço, e ele teve que voltar com a promessa de sair mais cedo de casa na próxima vez. 

Fiz muitas vezes, como disse, um trajeto que consistia em voltar pela Av. St Dumont, saindo do Colégio Militar, em direção ao centro, passando defronte aos colégios da Imaculada Conceição e Justiniano de Serpa (que ficam frente a frente). Depois, continuava pelo calçadão C. Rolim até chegar na Praça do Ferreira. Lembro do corredor de vento que se formava quando me aproximava da Rua Gov. Sampaio, certamente um refresco para quem andava por ali naquela horário calamitoso de uma da tarde. Chegava à praça e corria para a Livraria ao Livro Técnico que havia no Ed. Sul América, ainda lembro do cheiro dentro dela, de livro novo, de conhecimento ao alcance das mãos. Havia um subsolo onde estavam os tesouros quase inalcançáveis para mim na época: os livros de xadrez da Colección Escaques.

Quando “conheci” Milton Dias, também para mim o Colégio Militar e aqueles passeios pelo centro já eram coisa do passado, guardavam certa nostalgia. Guardam até hoje. O mestre cronista tinha toda razão, jamais achei um erro em suas afirmações. E hoje, quando lembro de tudo isso, é uma frase dele que não me sai da cabeça: “E tudo dói, quando vira saudade”.

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Um ofício nada sutil

Nas ruas de uma qualquer grande cidade, atrás de um ponto de ônibus, encostado num balcão de bar, sentado esperando um café, há sempre um narrador onisciente no exercício de seu ofício tão indispensável à literatura, pronto a presenciar as maravilhas e desgraças da natureza humana. Ele observa os passantes, os que ficam, os que não sabem a próxima coisa a fazer…

Alheio, ou aparentemente alheio, um homem rola no chão.

Para todos os efeitos, e sob qualquer critério, trata-se de homem adulto, como atestam os muitos danos da idade, aliados aos de nascença, espalhados pelo corpo.

Cabeça, pescoço e braços normais contrastam com um tronco de dimensões reduzidas, no qual estranhos e inesperados volumes no peito e nas costas oprimem a surrada camisa. As pernas são tristes arremedos atrofiados, sem vida, incapazes de esticar, de sustentar o corpo ereto.

Faz sons de criança, ou de gato. Gira sobre si mesmo, apoiado de lado ou sobre as costas. Seu faz de conta infantil não resiste à singela observação de que faz aquilo pelo sustento: ter a consciência da necessidade do dinheiro para sobreviver é atributo adulto, exclusivo, ainda quando visto numa criança. Além dessa falha fundamental, só se antevê sua verdadeira compreensão do mundo quando uma nota maior é jogada em sua caixa de esmoler. Mas apenas um olhar atento, como o do narrador onisciente, pode atinar para a nuance, o entendimento do valor do dinheiro, um conceito nada primitivo, completamente incompatível com o personagem encenado a sol e chuva, dia após dia, como duro ganha-pão.

O narrador pensava ter esgotado aquela observação, e seus olhos buscaram outra imagem. Aproximava-se um homem de andar vigoroso, de meia idade, bem vestido, camisa abotoada, sapatos de couro. Cabelos que tinha sido completamente louros, ostentavam agora uma mescla prateada que lhe conferiam um ar distinto. A pele gasta e avermelhada no rosto e pescoço indicava que, o que quer que aquele homem tivesse na vida, era fruto de árduo trabalho, de sol a sol. Segurava um cigarro com sua única mão. Quando estava bem próximo ao homem que girava e grunhia no solo, ele colocou o cigarro na boca, enfiou a mão num bolso da calça e retirou uma nota de dez reais, que depositou, sem se deter, na caixa humanitária. Depois, continuou seu caminho, a mão procurou a boca para voltar a segurar o cigarro. Seguiu sua marcha resoluto até sumir na indefinição da multidão como se seu gesto, tão rápido e discreto, não ocupasse mais espaço algum de sua consciência.

Durante o tempo em que o narrador onisciente ficou observando, talvez dez, quinze minutos, poucos passantes pareciam notar o esmoler. A caixinha mal recebera quatro ou cinco moedas, algumas de um real, algumas de vinte e cinco centavos ou menos. O homem no chão mal alterava seu deprimente número ao ouvir o tilintar das pratas, mas a ausência de som ao cair a nota graúda (pelo menos para ele era graúda) chamou sua atenção. Ele olhou a caixa e recolheu rápido a nota para dentro de sua camisa, local seguro.

O homem com um braço só, que aparentemente levara sua vida como se ter dois fosse uma extravagância desnecessária, talvez tenha visto na triste cena do esmoler que rastejava uma espécie de futuro paralelo que soube evitar, ou simplesmente compreendia melhor que os outros a dificuldade daquela situação extrema. A verdade é que tão pouca informação ele deu, em seu passo ligeiro, em sua generosidade rápida, que a razão de seu ato permanecerá um mistério até o dia do juízo.

O narrador verificou os bolsos, tirou uma nota sem olhar o valor, mas deteve-se. Não ficava bem um narrador onisciente tomar parte no enredo, alterar os fatos. Recuou. Sentiu-se como o homem no chão, estava ali, mas era como se não estivesse. Não fosse outro narrador onisciente que, mais atrás, testemunhava tudo, aqueles fugazes momentos jamais seriam escritos, permaneceriam ocultos, como os motivos do homem que iluminou a tarde com seus passos rápidos e um braço só.

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Tempo e Xadrez

Créditos da imagem

O relógio de pulso do árbitro marca exatamente 14:00. Ele olha o amplo salão onde os jogadores sentam impacientes, limpa a garganta e declara na melhor voz possível: “Relógio das brancas em funcionamento!”. Assim começa uma rodada num torneio de xadrez.

Uma frase estranha. Não se diz, por exemplo: “As brancas podem mover!” ou “Que comece a batalha!”. Não, simplesmente mandam acionar o relógio do jogador de brancas. Depois de acionado, começa a partida, ou pelo menos é melhor que seja feita uma jogada, senão o tempo acaba, e o outro vence sem precisar sequer mover um peão.

As pessoas imaginam uma competição de xadrez com várias mesas, cada uma com dois adversários e um tabuleiro sobre o qual andam (na verdade são empurradas) peças brancas e pretas. Quase ninguém se lembra do relógio. Um artefato pouco usual, exceto no meio enxadrístico, com dois marcadores, um para cada jogador. Durante uma partida, há sempre um parado e outro funcionando (o tempo nunca para, não é mesmo?). Se o tempo termina, a partida acaba. Vence quem ainda tem tempo. É um martírio para alguns!

Os jogadores iniciantes, então, ficam apavorados com o relógio. São capazes de jogar muito bem sem aquele trambolho do lado, mas quando ele é posto em marcha, subitamente os valores das peças se invertem, primeiro apertam no relógio para depois jogar, derrubam o monstrengo, afoitos, ou, então, simplesmente ficam paralisados, a cabeça em repetição das mesmas jogadas, até que voltam ao mundo dos vivos quando o adversário, feliz, anuncia que o tempo acabou.

Sim, o xadrez de competição não é uma luta tridimensional, mas quadridimensional! O xadrez de torneio não se resume a dar xeque-mate, mas também exaurir o tempo do outro!

Engana-se quem pensa que os jogadores ficam lá, sentados, testando a paciência e a aptidão ergonômica do adversário, enquanto tentam livremente encontrar a jogada absoluta. Não, eles precisam usar bem o tempo! Precisam transformar cada posição do tabuleiro numa charada, num quebra-cabeças, que dê trabalho e tome tempo para ser resolvido.

Mas nem todos tomam esse cuidado.

Uma vez, num torneio, dois jogadores apertaram as mãos, amistosamente, e aguardaram o anúncio do árbitro. Quando foi dada a ordem de acionamento, ambos se esforçaram ao máximo para usar pouquíssimo tempo, tanto que era difícil seguir o ritmo das jogadas! Poucos minutos depois, enquanto as outras partidas do torneio mal tinham quatro ou cinco jogadas, eles se viram na embaraçosa posição de rei contra rei, empate! Na mente de cada um, a constatação útil no xadrez tanto quanto na vida: “eu preciso aprender a usar melhor meu tempo”.

Assim, o xadrez de torneio não se trata somente de dominar o centro do tabuleiro, colunas e linhas abertas, atacar e defender, é sobretudo uma luta pelo tempo; não o tempo do relógio de pulso, o tempo do calendário, este fica como que parado, suspenso. É um tempo dentro desse outro tempo, um tempo que lhe toma o lugar, e torna-se o único tempo que importa, pois enquanto o relógio de xadrez estiver em marcha, haverá sempre um lance a ser feito!
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