Chegou a REVISTA XEQUE

Conversamos com o MN Nicolau Leitão, que acaba de lançar a REVISTA XEQUE, a mais nova revista brasileira de xadrez.

Já tivemos revistas muito boas de xadrez no país. Podemos citar algumas delas: Xadrez Ciência, Jogo Aberto, Xadrez Alternativo, Lance e Revista Brasileira de Xadrez Postal (que ainda existe). Não podemos deixar de citar a Xadrez Coop, que era editada pela CBX e distribuída nos anos 1990 a todos os enxadristas “federados”.

Algumas revistas nacionais de xadrez que circularam nos anos 1980 e 1990.
Algumas revistas nacionais que circularam nos anos 1980 e 1990.

Mesmo com os novos formatos que a internet disponibiliza, as revistas têm um forte apelo na memória de muitos enxadristas, muitos deles formados na consulta desses periódicos que traziam alguma luz sobre os acontecimentos do xadrez nacional e mundial. No exterior, tradicionais revistas como a holandesa New In Chess e a francesa Europe Échecs ultrapassaram o desafio dos novos tempos e se mantém firmes.

O Mestre Nacional Nicolau Leitão nunca perdeu o encanto pelas revistas de xadrez. Aliando sua vocação para o jogo e para a prosa, ele aposta no formato digital para levar o xadrez a um público ainda maior, a exemplo do que foi conseguido com sucesso pela série O Gambito da Rainha: ele acaba de lançar a REVISTA XEQUE, disponível em formato Kindle. A REVISTA XEQUE está incluída no catálogo do Kindle Unlimited, sendo integralmente acessível aos assinantes desse serviço da Amazon.

Ele gentilmente respondeu a algumas questões sobre a Revista Xeque para este blog, que também tenta manter-se firme em meio a pluralidade de mídias que a internet oferece. Com a palavra, MN Nicolau Leitão:

1) LQI: Nicolau, parabéns mais uma vez pela iniciativa. A família Leitão tem várias ações relevantes no xadrez nacional, e não somente nos tabuleiros! Você pode falar um pouco da tua formação como jornalista que pode ser ainda desconhecida do público do xadrez?

MN Nicolau Leitão: Obrigado pelas palavras elogiosas. Eu sou graduado em Comunicação Social, com habilitação em Rádio e TV pela Universidade Federal do Maranhão. Sempre tive o foco de trabalhar com jornalismo esportivo. Assim, já apresentei um programa na Rádio Universidade e fui concursado da Empresa Brasil de Comunicação. Na TV Brasil, participei de transmissões da Série C, apresentei programas sobre o Sampaio Corrêa e o Moto Club, fui comentarista, repórter etc. Depois de 6 anos na empresa, eu aderi à demissão voluntária e fundei a Escola Leitão de Xadrez.

2) LQI: No Editorial do primeiro número da Revista Xeque você fala que era um projeto antigo, que se torna real hoje, quando vemos o enorme sucesso dos canais sobre xadrez no YouTube e uma certa decadência dos formatos escritos como os blogs. A Xeque busca retomar esse espaço para o texto (e ótimos textos) sobre xadrez? Ela faz parte de um projeto maior?

MN Nicolau Leitão: Eu sou um amante da palavra escrita e tenho alguns livros publicados no formato Kindle. Pretendo aprofundar essa carreira, com a revista e livros para iniciantes e enxadristas de nível intermediário. Também tenho alguns projetos nesse sentido fora do xadrez. Faço tudo isso com amor, motivado pelo gostar de fazer.

3) LQI: Qual a periodicidade planejada para a Xeque? O Editorial abre espaço para colaboradores, como seria: “seção de cartas”, “mande sua partida”, textos de leitores, etc?

MN Nicolau Leitão: A princípio, eu penso em publicar uma edição a cada dois meses, mas ainda não estou 100% convicto. Isso depende muito do retorno também. A internet e as ferramentas de autopublicação permitem uma interação nunca antes vista. Então, eu vou ficar muito feliz com as colaborações, nesse sentido mesmo, de opiniões e até eventualmente de análises, reportagens e afins. É só enviar para nicolauleitao@gmail.com.

4) LQI: Também sou um entusiasta do texto, mesmo sabendo que hoje o formato de vídeo tem um apelo quase irresistível. Os formatos para e-book (epub, mobi) poderão oferecer possibilidades muito interessantes em novas versões no médio prazo (como a inclusão de elementos gráficos móveis, como visor de partidas, a exemplo do que temos na New In Chess, que usa um aplicativo próprio para isso). Você acredita que isso pode dar mais força ao formato de periódicos de xadrez na era digital?

MN Nicolau Leitão: Com certeza. Eu sou assinante da New in Chess e tenho vários livros pelo aplicativo Forward Chess. Essa inovação do visor de partidas é espetacular, especialmente para leituras mais leves, sem ter tanto o rigor de um treinamento.

5) LQI: Você cita no Editorial a importância da série “Gambito da Rainha” que criou uma nova onda de praticantes e interessados em aprender mais sobre o xadrez. Ficou claro que, quando é dada ao xadrez uma chance de se apresentar propriamente, o encanto é questão de tempo. Como os criadores de conteúdo, professores e jogadores de xadrez podem se inspirar nessa lição e promover melhor o jogo no Brasil?

MN Nicolau Leitão: O xadrez precisa ser divertido. Nós precisamos fugir dos estereótipos “quadradões”, de um jogo extremamente sério, que exige silêncio absoluto. Se o processo não for divertido, o aluno desiste. Então, o uso de linguagens audiovisuais e outras ferramentas que despertem a atenção são absolutamente necessárias. É preciso oferecer a oportunidade para que as pessoas descubram quão divertido o xadrez pode ser.

6) LQI: Deixamos esta última pergunta como um espaço para uma mensagem final aos leitores do LQI sobre a Revista Xeque e outros dos teus projetos.

MN Nicolau Leitão: Agradeço novamente pelo espaço e peço para a turma ficar de olho em nossas redes sociais (@nicolauleitao@escolaleitaodexadrez@revista.xeque), assim como na nossa página de autor na Amazon. Obrigado.

Página de autor do MN Nicolau Leitão na Amazon

Nicolau, é o LQI que agradece pela disposição em aceitar nosso convite. Estamos sempre à disposição para divulgar iniciativas valorosas como esta.

Desejamos sucesso à revista e a todos os demais projetos!

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O Gambito da Rainha: xadrez em nova série da NETFLIX

Com “O Gambito da Rainha”, o xadrez volta a ser tema principal numa série NETFLIX. Escrevo aqui minhas impressões após o primeiro episódio.

Os grupos de xadrez aguardavam há meses a liberação da série “O Gambito da Rainha” (The Queen’s Gambit) da NETFLIX. A expectativa era grande, alguns temendo o enfoque que seria adotado sobre o jogo (e sobre os jogadores).

Como acontece com diversas obras cinematográficas, a série é baseada no livro homônimo lançado em 1983 pelo escritor Walter Tevis.

A história se inicia em 1967, quando a protagonista, Elizabeth (Beth) Harmon (interpretada na infância por Isla Johnston e na fase adolescente/adulta por Anya Taylor-Joy), perde a mãe (aparentemente uma doutora em matemática com problemas pessoais) e é acolhida num orfanato. A tragédia é o caminho que leva Beth até um jogo ainda desconhecido para ela: o xadrez.

Imagem: Netflix (Isla Johnston como a pequena Beth Harmon)

Enxadristas costumamos ser bastante exigentes com histórias que trazem nosso amado jogo como destaque, mas acredito que não há o que temer, pois atuaram como consultores de xadrez nesta série nada menos que Garry Kasparov (dispensa apresentações) e Bruce Pandolfini (famoso técnico norte-americano que também atuou nesta função no clássico “Lances Inocentes”).

Assim como no recente filme que também tratou de xadrez, “The coldest game”, certamente alguns outros estereótipos nem tão positivos sobre jogadores de xadrez voltarão a ser explorados (como aliás, acontece em filmes sobre outros esportes também). Não vejo isso necessariamente como algo negativo, a ficção tende a exagerar certas coisas, vejo isso como o preço a se pagar para que nosso jogo esteja presente em obras relevantes de grande alcance popular.

O primeiro episódio busca nos situar na história de Beth Hermon e como o xadrez entrou em sua vida. Há elementos do que conhecemos das histórias sobre a forma como Capablanca aprendeu xadrez, ainda muito jovem, apenas vendo outras pessoas jogando.

As clássicas menções a exibições de simultâneas e ao jogo às cegas também estão presentes, a meu ver com bastante sucesso, sem exageros.

Trazer uma menina como prodígio de xadrez é algo muito bem vindo, certamente uma inovação do livro que deu origem à série, escrito antes do sucesso das irmãs Polgar. Beth vence os estereótipos da época (infelizmente ainda presentes nos dias de hoje), quando desafia a frase dita por um adversário: “mulheres não jogam xadrez”. Lance de mestre, merece duas exclamações!

Sem dúvidas (...) será um grande incentivo ao xadrez, e não somente ao xadrez feminino.. Click To Tweet

Sem dúvidas, a penetração da série em muitas casas brasileiras (e mundo afora) será um grande incentivo ao xadrez, e não somente ao xadrez feminino. Não vejo a hora de assistir ao segundo episódio!

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Leia também:

Bronstein: o sonhador do xadrez

David Bronstein foi um dos maiores criadores do xadrez, um homem de ideias fervilhantes sobre o jogo, mesmo dormindo! Ficou famosa uma partida completa que teria jogado, em sonho… O adversário? Ele mesmo!

Já escrevi alguns textos sobre o Grande Mestre David Bronstein (URSS/Ucrânia, 1924 — 2006), para mim, o mais humano dos grandes mestres, também um dos maiores artistas e exploradores do jogo.

Talvez à exceção de Botvinnik, seu grande rival, só se encontram boas palavras sobre o pequeno homem, já comparado a um professor de latim [1], cuja aparência física e temperamento aparentemente tímido, contrastavam em absoluto com as poderosas ideias que testava (às vezes sem sucesso, é verdade) no tabuleiro, perante boquiabertos oponentes.

Bronstein, por exemplo, costumava usar bastante tempo pensando já na primeira jogada de uma partida! Como um músico que cuida que uma obra-prima se executa desde a primeira nota.

Um dos episódios pitorescos da vida de Bronstein foi a suposta partida que ele teria jogado (contra si mesmo?) em sonho , segundo uma afirmação de Smyslov. Uma partida completa que ele teria anotado logo após acordar e que chegou a ser publicada [2].

A partida aparece também no livro “Wonders and Curiosities of Chess”, página 142 [3].

Algumas fontes na internet afirmam que Bronstein teria negado a autenticidade da partida posteriormente, mas o fato é que ela já serviu até mesmo como argumento científico em artigo dos professores Matteo Colombo e Jan Sprenger publicado em 2014 [4].

Vale pena ver a partida, que tem um belo desfecho, principalmente o belíssimo 15 … b5 das pretas!

Nesses dias em que o xadrez de alto nível está tão dominado por preparações longas e herméticas feitas por computadores, faz bem rever essas histórias de alguém que sempre considerou o xadrez não uma mera disputa, mas um celeiro de ideias grandiosas, mesmo que guardadas no mais profundo e inconsciente dos sonhos.

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Referências:

  1. David Bronstein, El Ajedrez de Torneo: Zurich 1953 candidatos, Club de Ajedez, 2ª ed, 1984.
  2. Chess Review, Vol. 29, Nº 8. Agosto, 1961.
  3. Irving Chernev, Wonders and Curiosities of Chess, Dover Publicantions, New York, 1974.
  4. Matteo Colombo & Jan Sprenger, The predictive mind and chess-playing: A reply to Shand, Analysis, Volume 74, Issue 4, October 2014, Pages 603–608, https://doi.org/10.1093/analys/anu081.
  5. Edward Winter, Chess and Sleep.

Um erro famoso e instrutivo

Um erro certamente não proposital criou um problema muito famoso que ilustrou diversos livros e contribuiu para a divulgação de uma fantástica partida de xadrez.

A quinta partida do match Capablanca × Marshall em 1909 ficou famosa por diversos motivos, e não somente pela técnica demonstrada por Capablanca na fase final da partida.

Por muitos anos, diversos autores divulgaram que Marshall deixara passar a chance de vitória após a 44ª jogada de Capablanca (provavelmente reproduzindo o erro de uma coluna da revista The Chess Review de junho/1933, sem se dar ao trabalho de checar os lances originais da partida em outra fonte):

Diagrama original retirado da colune “Mistakes of the masters” de Lester W. Brand “The Chess Review” de junho/1933. Posição após 44 … Ba2.

Chernev aponta ainda que este mesmo diagrama (que contém um erro) foi citado em diversos livros e artigos, como The Chess Mind (Gerald Abrahams, 1951 ) e no mais recente The 10 Most Common Chess Mistakes … and how to avoid them! de Larry Evans (1998).

Diagrama nº 61 do livro “The Basis of Combination in Chess” (J. Du Mont, 1938) reproduzindo o erro de Brand.

Esta última referência, de Evans, é curiosa, pois ele próprio corrige a informação em seção de perguntas e respostas de Chess Life & Review de novembro/1974 (página 750):

Recorte da resposta de Larry Evans,
indicando que o correto era dama em b6 (QN6).

O que tornou essa posição (errada) famosa foi a suposta falha de Marshall em encontrar uma continuação ganhadora relativamente simples: 1. De8+ Rg5 2. f4+ com vitória, pois se 2 … Rg4 De2# ou 2 … Rf6 3.Dh8+ ganhando a dama.

Na verdade, como apontou Evans, a posição correta tem a dama branca na casa b6 (e não c6), e a linha vencedora acima simplesmente não existe para as brancas.

Segue a partida completa:

Certamente, Marshall, o homem homenageado com uma chuva de moedas de ouro, jamais deixaria uma chance como essa de derrotar seu histórico rival.

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Deixem as Fake News longe do xadrez

Vivemos a era da disseminação de mentiras com cara de verdade. Mas, por favor, deixem o xadrez fora disso!

Emmanuel Lasker tem uma famosa frase sobre verdade e xadrez: “No tabuleiro de xadrez, a mentira e a hipocrisia não sobrevivem por muito tempo”.

Xadrez, de fato, é terreno para a busca da verdade, e muito de seu encanto vem do fato que, embora perante os olhos de qualquer um, ela fique tão escondida entre as peças e suas intrigas de cores alternadas.

Por esses dias, recebi de diversas fontes (inclusive de alguns enxadristas) uma triste mentira:

Fake News não têm poupado nem o xadrez

A imagem, muito famosa, mostra uma exibição de simultâneas realizada em 1920 pelo garoto prodígio Samuel Reshevsky (1911 – 1992). Na ocasião, Reshevsky enfrentou não somente 8, mas 20 adversários (nem todos na imagem) e, ao contrário da mentira divulgada, derrotou todos.

Fico imaginando as razões de quem criou a falsa informação e iniciou a corrente de falsidade, mas o fato que entendo ainda menos é o porquê de muitas pessoas passarem adiante… Algumas como uma interrogação (“isso é verdade?”), outros como quem manda uma piada (sem graça alguma).

Algumas simples verificações antes de propagar a imagem teriam detido sua proliferação (falta de cuidado que, aliás, tem sido comum e decisiva para o sucesso do espalhamento de mentiras em outros contextos da vida):

  1. Uma foto de um garoto que perde para mestres adultos no início so século XX seria algo tão incrível assim para merecer a posteridade?
  2. As feições desamparadas de alguns dos adversários na foto não servem de pista de que eles estão desconfortáveis (ou seja, perdendo)?
  3. As peças do tabuleiro não estão bem visíveis, mas há diversas fontes, como a Wikipédia, que falam exatamente do contexto da foto e do desfecho das partidas.
Nota na Wikipédia sobre o tema.

A foto original foi feita durante uma seção de partidas simultâneas do jovem prodígio contra um grupo de 20 fortes jogadores parisienses. A disputa ocorreu no Club des Echecs du Palais Royal no dia 16 de mai de 1920 (o pequeno Samuel, portanto, ainda não havia completado 9 anos de idade).

Relatos efusivos da imprensa francesa da época reportam que ele venceu todos os 20 adversários, mas apenas um das partidas, contra Herzfeld, foi preservada.

Para fazer justiça a Samuel Reshevsky, fica o registro de que era dotado de extraordinário talento para o xadrez, desde muito cedo descoberto.

Seus pais (extremamente pobres) foram convencidos por um “empresário” para que ele se apresentasse (a dinheiro) perante adversários mais velhos em exibições por várias partes do mundo, a começar pela Europa. E houve muitas, além de Paris, citada acima, até que a família seguiu para os EUA, onde acabou se instalando definitivamente.

Reshevsky (lado esquerdo em pé), em 1921, prestes a enfrentar 20 jogadores em Cleveland (EUA).

Autoridades norte-americanas tiraram o jovem Reshevsky da tutela de seus pais, pois foi considerada abusiva a forma de explorar os talentos do menino, que sequer frequentava a escola.

Sua tutela foi dada a um milionário filantropo que cuidou da educação do jovem até sua graduação na Universidade de Chicago em 1934.

Após a graduação, Reshevsky voltou a tomar parte em competições de alto nível, por exemplo, vencendo o Torneio de Margate em 1935 à frente de Capablanca (a quem venceu no confronto individual).

Apesar de nunca ter sido um profissional do xadrez em tempo integral, Reshevsky foi um sério candidato ao título mundial até o final dos anos 1960, considerado por muitos o melhor jogador do mundo fora da URSS até a chegada de Fischer.

No xadrez, e muito mais na vida, a verdade é muito preciosa. Pena que uma óbvia mentira, como a citada, possa demorar tanto para ser desmentida e seu estrago possa ser irrecuperável.

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