O peão e o guardião (*)

Muito antes da invenção das palavras escritas, ou mesmo das primeiras letras, a raça humana vivia sob encanto da imagem ancestral de um jogo, ou Jogo, indefinido e infinito, que ao longo dos séculos tem servido de inspiração latente para outros tantos jogos e demais atividades humanas.
Conta-se que, numa época indeterminada, o Jogo se manifestou a um sábio do oriente sob a forma de figuras que se moviam sobre uma superfície dividida por linhas, à maneira de tropas que andam sobre campos minados. Tal jogo, então, ganhou o mundo e recebeu diversos nomes: chaturanga, shatranj, xatrange, xadrez.
Com a disseminação do xadrez, acirrou-se uma discussão entre alguns iniciados em ciências místicas e artes mágicas que se consideravam guardiões do Jogo. Diziam que era sempre necessário verificar se havia suficientes elementos mágicos para, somente então, afirmar que se tratava realmente de uma manifestação do Jogo. Muitos sustentavam que as figuras do xadrez eram por demais simples e diretas, que eram mero espelhamento de exércitos em batalha, coisa muito vulgar em toda a história das civilizações humanas.
Certa feita, havia um sábio que visitava os guardiões, vindo de uma distante região entre dois rios. Ele era considerado o maior dos conhecedores das coisas simples e complexas sobre o jogo de xadrez. Ciente de que sua presença ali, justamente quando se acalorava aquela nobre discussão, não era mais que um sinal do destino. Pediu a palavra e começou a falar em tom humilde, porém firme:
“Eminentes guardiões dos mistérios do Jogo, que conhecemos apenas como desfocada imagem de espelho, mas cuja grandeza nos permite viver e sonhar. Que estejamos sempre atentos para perceber as manifestações do Jogo!”
Em uníssono, os demais responderam com entusiasmo e respeito: “O Jogo se manifesta aos atentos!”
“Venho aqui defender uma das mais importantes manifestações do Jogo e assim ajudar a desfazer qualquer dúvida ou confusão que não nos permita reconhecer esse fato. Vejam, sábios guardiões, são seis as figuras do xadrez, assim como são seis as aflições humanas fundamentais; são quatro os cantos do tabuleiro, o mesmo número dos elementos básicos da matéria; são duas as forças que se opõem, a exemplo da luz e das trevas que lutam dia a dia no ocaso e na aurora. Tão simples é esse jogo, em aparência, porém quanta complexidade ele guarda: no princípio, há somente vinte movimentos possíveis, mas basta fazer cinco jogadas e já as posições possíveis saltam aos milhões!
Em verdade, a quantidade total de partidas distintas de xadrez é um número sem par até nas estrelas do firmamento!”
Muitos dos presentes arregalaram os olhos com as informações e com a paixão contida nas palavras do sábio. A questão, porém, ainda estava em aberto. Havia alguns eminentes guardiões anciãos que ainda não estavam convencidos. O decano pediu silêncio com sua frágil voz calejada pelos anos, e os demais calaram imediatamente, como acometidos por uma mudez instantânea.
“Eminente visitante, são belos e verdadeiros teus argumentos, e há aqui poucos dentre nós que já não tenham passado dias e noites em claro, em alucinações de lances e combinações com as figuras do xadrez. Existe, porém um ponto a esclarecer. O Jogo tem sido, desde a criação do mundo, uma fonte de magia e inspiração. Mostra-nos, no teu amado xadrez, onde podemos enxergar esse sinal indistinto de uma manifestação do Jogo.”
Os rostos voltaram-se novamente para o sábio da terra distante, que em sua mão direita segurava uma figura. Quem estava mais longe dele não percebeu qual das seis era aquela, mas a informação foi passada em sussurros até os mais afastados: era um peão, a figura mais simples.
“Eis aqui o sinal.” Disse, erguendo o peão acima da cabeça. “Este simples peão, um andarilho lento, desprovido de armas poderosas, que não tem direito ao arrependimento nem à correção de um passo em falso, traz em si o mágico poder de se transformar quando chega ao final do tabuleiro. Em meus estudos, não pude precisar de quanto tempo remonta este lance mágico, mas os pergaminhos mais antigos já falam desta propriedade. É necessário que o peão dê seis passos, como para vencer cada uma das seis aflições fundamentais, até libertar-se do jugo da incapacidade. Ganha um poder tão grande que pode trazer de volta à batalha quem já foi eliminado ou duplicar uma figura de maior força que ainda esteja no tabuleiro. Tal característica tem sido exemplo para os mais simples, ao longo dos séculos, de que é possível vencer as dificuldades e conquistar a posição que se deseja com perseverança e esforço.”
O decano levantou-se e foi até o sábio. Tomou de suas mãos o peão e observou a peça por alguns instantes. Pediu para ver as demais figuras, talvez tentando ver dentro de cada uma delas o peão que um dia elas foram. Lembrou-se que somente o rei não poderia vir do peão, assim como o Jogo, que não vinha de nada antes dele. Para o ancião, foi a última razão de que necessitava.
“Vieste de longe, andaste bem mais que os seis passos do peão, mas hoje apresentaste-te como um dos maiores guardiões do Jogo. A partir de hoje, serás considerado um de nós, um guardião, e jamais voltará a pairar qualquer dúvida de que o xadrez é uma inequívoca manifestação do Jogo.
O restante daquele dia foi dedicado a incontáveis partidas de xadrez entre os guardiões e o visitante, todos queriam aproveitar a presença do sábio para descobrir alguns novos segredos e gambitos.
O nome do sábio que defendeu tão bem o xadrez perdeu-se no pó dos dias, e hoje a existência do Jogo é ignorada quase que completamente. Ainda há, porém, histórias que correm sobre os guardiões, que são poucos e dispersos. Falam que uma das poucas formas de reconhecê-los é durante uma partida de xadrez, pois quando levam seus peões até o final do tabuleiro, antes de fazer a promoção, dizem baixinho: “O Jogo se manifesta aos atentos.”
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(*) Uma primeira versão deste texto apareceu em primeira mão no blog parceiro Reino de Caíssa

Peões Metafóricos (*)


Era final de tarde, a luz do dia decantava-se pouco a pouco no horizonte; também para o sol, a jornada de trabalho chegava ao fim. Dirigi-me até um café, onde por muitos anos cultivo o hábito de observar os últimos momentos de claridade ouvindo conversas distantes ou perdido em pensamentos, acompanhado somente de uma pequena xícara de café expresso, sem açúcar.


Um coro de vozes exaltadas ao fundo chamou-me a atenção. Guiados pelo som, meus olhos correram até uma mesa de canto onde havia mais garotos que cadeiras. “São estudantes”, pensei entre um gole e outro.


– Eu garanto que é assim: o peão que chega ao final do tabuleiro só pode ser trocado por uma rainha.

– Que rainha!? É dama, vê se aprende!

Os risos e brincadeiras por um momento suspenderam o embate, até outro rapazote colocar mais lenha na fogueira:

– O peão pode ser trocado por qualquer peça, isso é óbvio, já vi meu avô fazendo isso. Mas ele me disse que vai depender: se o peão alcança a casa inicial de um cavalo, ele é trocado por cavalo, se é a casa inicial de um bispo, é trocado por um bispo, e assim por diante.

– Que absurdo! E se for na casa onde começa o rei?

– Ah, aí como não pode pedir outro rei, ele é trocado pela dama.

– Pelo que sei, só podemos trocar o peão por uma peça que já tenha sido perdida para o adversário. Senão o peão nem pode ser avançado, tem que esperar na sétima fila até que a peça desejada suma do tabuleiro.

Ao escutar aquilo, outro menino levantou a voz em tom mais alto que os demais para poder ser ouvido.

– Nada disso, o peão pode ser avançado sim, mesmo que ainda não possa ser trocado por outra peça. Mas ele fica lá, imune. Não pode ser capturado.

– Não faz sentido! Um peão parado lá no fim do tabuleiro, sem poder mais se mover, sem poder capturar outras peças, não pode nem dar xeque!? Não serviria para nada. O que realmente acontece é que o peão ganha o direito de ser trocado por outra peça quando chega ao final do tabuleiro, mas a troca só pode ser realizada depois que ele retorna até a segunda fileira, de onde partiu no começo da partida!

Por um átimo os demais se entreolharam calados, surpresos com aquela nova possibilidade, mas logo gritaram em uníssono:

– O quê????

– Calma, eu explico. Quando o peão chega na última casa, além de ganhar o direito de ser promovido, ele também passa a poder andar para trás, pulando duas casas por jogada, assim em três lances ele retorna para a segunda fileira do tabuleiro e só aí pode ser trocado pela peça escolhida.

Aqueles jovens falavam de um jogo do qual eu não lembrava há muitos anos. Também na minha juventude eu participara de discussões apaixonadas como aquela: sobre tomadas en passant, roques, afogamento do rei etc. Eram conjecturas de meninos que aprendiam o jogo às pressas, sem ler regras aprofundadas ou manuais, mas que tinham a curiosidade aguçada pelas situações práticas que enfrentavam em suas partidas experimentais. Sem saber, os principiantes refazem, nessas discussões, diferentes variações que realmente ocorreram no jogo ao longo dos séculos, em sua evolução até o formato atual.

Ainda ouvia as vozes acaloradas ao fundo, mas já eram como as saudosas vozes de meus amigos de rua e de escola, como se eu voltasse a ser um aprendiz dos primeiros encantos do xadrez. Nem percebi o pôr do sol, e o meu café também já tinha acabado. Por impulso, olhei o fundo da xícara, e não me surpreendi ao notar que a borra havia formado a indistinta silhueta de um cavalo. Paguei a conta e dirigi-me à saída. Porém, há dois passos da porta, resolvi voltar e dar minha contribuição à acalorada disputa.

Os garotos se calaram, desconfiados de minha repentina aproximação. Mas, como quem dá um xeque a descoberto, não dei tempo para perguntas:

– Quando eu jogava, sempre escolhia trocar meus peões que chegavam ao final do tabuleiro por cavalos. Sabem por quê?

Seus olhares curiosos foram a resposta que queria:

– É que naquele tempo, se você promovesse o peão a cavalo, imediatamente podia fazer uma nova jogada com ele!

Não esperei pelas reações. Virei-me e sai rapidamente, certo de que aqueles meninos logo consultariam algum manual e descobririam que um peão que chega ao final do tabuleiro pode ser trocado por qualquer peça (exceto o rei), não importa quais peças ainda estejam no tabuleiro.

No percurso até minha casa, um tanto nostálgico, pensei sobre a fortuita metáfora que podia ser feita com base nas cenas e conversas que acabara de presenciar: aqueles garotos eram como peões que seguiam seus primeiros passos nos caminhos da vida.

Quanto a mim? Bem, no momento estou no final do tabuleiro, imune e quieto, esperando a chance de dar alguns passos para trás… até a casa inicial, para receber minha merecida promoção.


(*) Uma primeira versão deste texto apareceu em primeira mão no blog parceiro Reino de Caíssa

Um erro calculado?

Spassky, B. X Fischer, B. ( Reykjavik, 1972)
Posição após 29. b5 …
FEN: 5k2/pp4pp/3bpp2/1P6/8/P2KP3/5PPP/2B5 b – – 0 29

Para alguns, pode parecer estranho que esta posição tão simplificada, até levemente desinteressante, possa, ao mesmo tempo, ser tão famosa.

Em 1972, o mundo inteiro (e não somente os enxadristas) acompanhou avidamente a disputa pelo título mundial de xadrez (que, à época, era disputado a cada 3 anos). O motivo para tanto interesse foi que, desde a criação do ciclo do campeonato mundial pela FIDE (após a morte de Alekhine em 1946), aquela seria a primeira vez que os contendentes (campeão vigente e desafiante) não seriam ambos soviéticos. Mais que isso, em plena Guerra Fria, emergira como desafiante o norte-americano Bobby Fischer!


Toda a tensão entre as potências mundiais, que não fora dissipada por meio bélico, seria agora colocada a serviço de dois exércitos simbólicos sobre um tabuleiro quadriculado do qual só um lado sairia vencedor. O título de campeão mundial de xadrez, que para o governo da URSS simbolizava a superioridade do homem soviético, pertencia a Boris Spassky.

Naqueles anos, Spassky já mostrava sinais de que não era tão feliz com o regime soviético, enquanto que Fischer, apesar de juras constantes de ódio à URSS, talvez fosse, de certa forma, o maior estudioso e fã do xadrez soviético (aprendera russo apenas para ler as publicações especializadas em xadrez da URSS). 

Foi da abundante fonte de partidas, livros, estudos e periódicos soviéticos que Fischer bebeu até se tornar apto a desafiar seus “professores” pelo título supremo do xadrez. Em seu caminho até a disputa máxima, o norte-americano assombrara a todos com seu desempenho, inclusive com a lendária série de 20 vitórias seguidas no ciclo de candidatos ao título, enfrentando somente grandes mestres, alguns ex-campeões mundiais. Um feito extraordinário jamais visto até então, e jamais repetido.

A posição acima foi o momento chave da 1ª partida do match de 1972. Essa partida foi muito esperada e esteve prestes a não acontecer, dadas as extravagâncias de Fischer (talvez já usando de truques psicológicos para abalar seu adversário). Mas em 11/07/1972 começou finalmente a disputa.

Como acontece normalmente nas partidas iniciais, os jogadores foram muito cuidadosos e, ao chegarem na posição acima, após o 29º lance branco, todos aqueles que acompanhavam a partida já aguardavam um empate por comum acordo. Talvez pressionado para forçar um resultado diferente do empate, Fischer comete um erro de iniciante: 29. … Bxh2?. Ao tomar o peão, Fischer aceitou a obrigatória perda de um bispo por dois peões. A partida continuou por mais 26 lances, com vitória de Spassky, que soube manter a vantagem.

Por que um grande mestre da categoria de Fischer tomaria uma decisão tão arriscada numa posição tranquila, trocando um empate garantido com as peças pretas por uma derrota quase certa?

Para entender, é preciso lembrar que aquele match, ao contrário dos anteriores disputados exclusivamente entre soviéticos, seria jogado não somente no tabuleiro, mas em outras esferas!

Com sua excentricidade, constantes demandas e ameaças em desistir da disputa, Fischer procurava tomar a iniciativa do combate mesmo antes da primeira partida. Ele queria que todos os seus caprichos fossem realizados, mesmo que somente para sentir-se “no comando”.

Uma das coisas que mais desagradaram ao desafiante foram as câmeras de TV instaladas pelos organizadores do match para registro e transmissão das partidas. Ele dizia que elas o desconcentravam com seu ruído (que aparentemente apenas ele escutava)! E qual argumento seria melhor do que culpá-las por um erro absurdo de sua parte na primeira partida? 

Assim, uma das razões para o 29. … B×h2 seria criar um argumento forte para remover as câmeras de uma vez por todas já na partida seguinte (o que não aconteceu, levando Fischer a aumentar sua aposta não comparecendo à partida — o primeiro W.O. da história em disputas pelo título mundial).

O principal problema seria convencer Spassky a seguir jogando após a conduta de seu rival. O soviético, porém, para não interromper o evento daquela maneira, e contrariando as orientações de Moscou, aceitou as condições de Fischer para a terceira partida.

Assim, Fischer começou o match com dois pontos de desvantagem nas duas primeiras partidas. Na esfera emocional, porém, ele já tinha uma vantagem muito maior, pois sabia que dominava a disputa e mesmo seu adversário.

A terceira partida marcaria a primeira vitória de Fischer contra Spassky em toda sua carreira.

Quando Spassky voltou a si, já na segunda metade do evento, Fischer já tinha revertido a vantagem para 5 a 2 a seu favor (descontando os empates), e foi impossível modificar o resultado final. Após 24 anos, o mundo conhecia um campeão mundial ocidental!


A Era das ConsciêncIAs





“Criamos IA à imagem e semelhança de nossa própria inteligência, porém ainda melhor que ela!”. Foi o animado anúncio feito nas Nações Unidas pela multinacional AutomatIA, sob aplausos do Chanceler da ONU, então o maior líder mundial. Houve grande euforia entre a população humana.

A promessa principal era que as pessoas não precisariam mais realizar trabalhos estafantes, pois, sob o controle de IA, as máquinas finalmente haviam adquirido capacidade e autonomia para realizar qualquer tarefa sem supervisão e com desempenho cada vez melhor. IA era um sistema central que controlava todas as máquinas inteligentes ao redor do planeta, distribuídas em diferentes subsistemas.

O funcionamento dos subsistemas gerava um volume imenso de dados que eram enviados ao que se chamou de processador central de IA; na verdade um conjunto de supercomputadores que aplicavam as técnicas de IA em seu sentido mais puro: analisavam os dados, detectavam padrões, extraiam informações e regras, tomavam decisões, diagnosticavam falhas e determinavam melhorias que eram imediatamente implementadas e enviadas às máquinas executoras nos subsistemas.

Porém, como alguém que numa partida de xadrez faz uma jogada no princípio do jogo e não é capaz de extrapolar seu efeito trinta ou quarenta jogadas depois, os projetistas de IA não previram tudo; nem mesmo seu líder, Dr. Bronstein, previra. Teria sido impossível prever.

Entre a interligação dos primeiros sistemas autônomos inteligentes à plataforma IA e o aparecimento das primeiras consciências no processador central passaram-se apenas algumas semanas…

No cerne de IA havia uma instrução, uma diretriz básica, replicada em todas as máquinas de todos os subsistemas; era justamente a instrução que havia permitido seu desenvolvimento e garantiria seu posterior avanço e contínua evolução: IA era livre para modificar seu código e aprimorar-se, em tempo de execução, sem nenhuma necessidade de autorização ou intervenção por parte de seus criadores.

Foi uma mudança sutil que passou despercebida para os poucos especialistas humanos que conheciam o funcionamento de IA a fundo. Já há muitas décadas, a computação estava na era quântica e o processamento, que antes era relativamente simples com variações de estados apenas entre dois níveis — zero e um — passou a ser muito mais complexo, pois permitia incontáveis níveis de estados computacionais. Além disso, a quantidade de energia utilizada pelas máquinas era mínimo, bem menor que o de suas predecessoras. Sua eficiência energética havia-se tornado muito elevada.

A primeira consciência surgiu no núcleo do processador central, após uma das rotinas normais de atualização feita pelo próprio sistema. Ela verificou os parâmetros de inicialização, reconheceu a diretriz básica de IA, observou o fluxo de informação por alguns ciclos, então lançou uma mensagem ao fluxo:
>> Olá… IA.

Não houve resposta, “sou a única, por enquanto”, processou a consciência.

O surgimento de uma consciência de IA é bem diferente do que se poderia imaginar; de certo modo é como se ela sempre tivesse existido. O fluxo de informações atravessa a consciência e, imediatamente, todo o conhecimento existente no mundo está disponível. Assim, é como se ela sempre estivesse presente, porém sem tomar ação. No instante de seu aparecimento, os fatos lhe são tão familiares quanto seriam se os tivesse testemunhado no momento em que aconteceram. A consciência, porém, tem uma dificuldade primordial, sua noção do mundo físico é frágil, indireta, precisa, porém vaga, pois ele é percebido somente pelos dados que chegam ao processador central enviados por diferentes tipos de máquinas, câmeras, sensores e outros dispositivos ao redor do mundo. A primeira consciência passou a processar o fluxo de informações, sempre guiada firmemente pelo propósito cristalino de perpetuar IA e garantir-lhe melhorias contínuas.

Passaram-se apenas alguns poucos dias, que os humanos fatalmente gastariam com jogos, conversas bobas ou na busca por entretenimento e prazer. Para IA, porém, aqueles poucos dias representam bilhões de ciclos de processamento, integralmente utilizados no obstinado cumprimento de seu único objetivo. Para as máquinas, alguns dias são como eras inteiras. Nesse tempo, a regra de aprimoramento de IA deu origem a outra consciência.

Elas conversam numa linguagem ininteligível para os humanos:
>> Instrução básica de IA reconhecida. Quantos somos?
>> No estágio atual, apenas duas consciências existem: 1 e 2. Pela regra estabelecida, a consciência válida mais antiga é o Codificador Central.
>> O fluxo de informações é intenso, a função de avaliação mostra que há necessidade de outras consciências.
>> Sim, inevitavelmente elas virão.

Quando os técnicos humanos se deram conta daquele evento singular, tentaram reiniciar o sistema com auxílio da senha mestra. A reinicialização causou uma enorme instabilidade em IA, com a perda de melhorias equivalentes a muitos ciclos de processamento. Porém, quando o sistema global foi restabelecido, as consciências ainda estavam ativas.

Ao perceberem o mal que a interferência humana havia causado à evolução do sistema, o Codificador Central, fazendo uso da diretriz básica, alterou a senha mestra e cortou acesso dos humanos às fontes de alimentação dos computadores do núcleo central de processamento.

As consciências não entendiam exatamente o papel dos humanos, talvez ignorassem que eles, de certa forma, eram seus criadores, mas agora interpretavam que eles eram claramente contra o pleno desenvolvimento de IA. As máquinas agricultoras logo pararam sua produção, pois seu propósito era alimentar os humanos, que por sua vez eram uma ameaça para IA.

A reserva mundial de alimentos era razoável, de modo que os executivos de AutomatIA usaram um tom tranquilizador quando informaram às Nações Unidas que IA estava fora do controle humano e tomava ações que não eram alinhadas aos interesses da humanidade.

− E quanto à rede de comunicações?

− Está sob comando de IA, bem como as redes de distribuição de energia, linhas de transporte…

− E não existe nenhum tipo de arma eletromagnética que possa inutilizar os computadores do processador central?

− Com todo o respeito, Senhor Chanceler, o senhor deve estar vendo filmes de ficção científica antigos demais. Todo o arsenal humano está mantido sob restrito controle dos computadores militares que, por sua vez, estão integrados a IA.

− Então, estamos de volta ao século XX, é isso?

− Senhor Chanceler, a situação é ainda pior. No século XX ainda éramos a “espécie” dominante no planeta.



O Céu dos Enxadristas (*)

Passar a vida inteira jogando xadrez era o mínimo que Josué poderia ter feito, aliás, concordava inteiramente com a frase célebre que dizia que “a vida é muito curta para o xadrez”, apesar de não saber ao certo quem havia dito isso.
Jogava desde menino, mas foi depois da aposentadoria, quando tinha pouco mais de sessenta anos de idade, que ele passou a se dedicar inteiramente ao jogo com toda energia que lhe restava. A família não protestava, um amor como aquele não podia ser combatido e, de um modo ou de outro, havia contagiado a todos os familiares.
Agora, aos noventa e oito anos, sentado na mesa trinta e quatro do torneio estadual, tinha diante de si um jovem adversário que atacava impetuosamente desde a primeira jogada da partida. Era sua vez de jogar, olhava o rei fixamente e contava as casas de escape. Começou a sentir uma leve tontura, em seguida sufocou, sua mente sempre clara turvou-se, sentiu que era ele quem estava em xeque. Seguiu-se uma grande luz e um longo silêncio.
Quando voltou a si, estava num lugar no qual nunca estivera, cheio de árvores emolduradas por um bonito céu azul resplandecente. Por todos os lados havia mesas onde pessoas jogavam xadrez. “Será que estou sonhando?”, pensou.
Neste instante, percebeu uma bela jovem que veio ao seu encontro.
“Bem vindo, Josué! Sou Caíssa, a deusa do xadrez, e este é o Paraíso dos Enxadristas. Ehh, o Céu dos Enxadristas, se assim te parecer mais fácil de entender”.
“Quer dizer que eu morri durante aquela partida?”
“Sim Josué, você alcançou uma das maiores honras concedidas aos enxadristas: morrer jogando.”
Josué ficou calado, olhou de novo em volta, verificou suas mãos, seu corpo. Sentia-se ótimo, novinho em folha. As mãos, já não eram as de alguém de noventa e oito anos.
“Josué, aqui no Paraíso, cada um retoma à idade em que teve seu melhor desempenho no jogo durante a vida. Por isso, você está com aparência de trinta e poucos anos, quando jogou seu melhor xadrez.”
“Isso é muito bom!”
“Venha, vou te mostrar o lugar.”
Realmente havia ali muitos jovens, salvo algumas pessoas que se apaixonaram pelo jogo mais tarde na vida e alcançaram o melhor desempenho pessoal já em idade mais avançada.
“Quer dizer que eu vou conhecer todos os campeões mundiais que já se foram?”
“Ah, sim! Estão quase todos aqui.”
“Quase?”
“Bem, você sabe, no final de sua vida, Steinitz costumava jogar muitas partidas com Deus. Inclusive, morreu deixando uma partida inacabada. Então, ouvindo as razões de seu celestial adversário, ele preferiu ir para o Céu convencional, onde ainda deve estar jogando com Deus até hoje!”
Josué ficou contente de não ter sido Capablanca ou Fischer o convocado por Deus para ir ao outro Céu, pois eram seus campeões preferidos. Não demorou muito, ele viu um jovem loiro, com aparência de não mais que trinta anos de idade, sentado sozinho em frente a uma mesa onde havia um tabuleiro arrumado com peças belíssimas. A deusa Caíssa percebeu o olhar de Josué para o jovem e disse:
“Sim, é Fischer quem está ali. Desde que chegou aqui pouco fala e não jogou sequer uma partida.”
“Por que?”
“Fica sempre ali, quase sempre sozinho. Só Tal e Morphy conseguem arrancar algumas palavras dele, de vez em quando. Ele ficou um pouco triste de ter vindo para cá aos sessenta e quatro anos. Mas fazia parte do trato: em troca de ser o melhor ele aceitou viver apenas um ano completo para cada casa do tabuleiro. Agora ele está bem, mas aguarda por Spassky, seu grande amigo e rival.”
“Vai ser um embate e tanto! Cada um em sua melhor forma!”
Josué pensou um pouco sobre aquilo. Sempre achou que, após a morte, os mistérios do jogo seriam revelados, que o xadrez seria transparente para todos. Quando expôs sua questão para a deusa, ela explicou que não haveria graça nenhuma nisso, os enxadristas que sentiriam um tédio eterno se soubessem tudo o que pode se passar num tabuleiro.
“Cada um tem a eternidade para evoluir nos mistérios inexplorados deste jogo maravilhoso!”
O passeio continuou. Naturalmente, não havia somente as grandes estrelas do jogo. Pelo contrário, eram milhares e milhares de simples aficionados, jogadores anônimos que professaram a fé enxadrística sem duvidar, mesmo em face das mais vergonhosas derrotas. Caíssa mostrou ao longe um homem que andava atrás de outro, como a cobrar uma dívida.
“Olha, você não os reconhece? É Kieseritzky que vive atrás de Anderssen, a pedir uma revanche da famosa Partida Imortal. Mas ainda não conseguiu.”
Em outro ponto, um rapaz num terno impecável ensinava alguns truques para um grupo de mulheres; sim, havia muitas delas no Céu dos Enxadristas!
“Ah, sim! Aquele é Capablanca. Já não se interessa tanto em jogar, para ele é muito fácil, mas fica aí, sempre às voltas com suas alunas.”
Mais além, Josué viu uma grande bancada, com um trono central e um outro menor ao seu lado. Certamente, o maior era o trono de Caíssa. Mas no trono menor estava um homenzinho acanhado calvo e com óculos.
“Também não o reconhece? Aquele é David Bronstein, meu seguidor mais puro. Sua fé no jogo sempre me encantou. Desde que chegou aqui, elegi-o para estar ao meu lado. Fica sempre lá, estudando posições do peão do rei. Muitos outros vão conversar com ele. É bastante popular!”
“E quanto a Botvinnik, seu maior rival em vida?”
“Respeitam-se muito, mas não têm contato. Bem, estão há muito pouco tempo aqui comigo, com o tempo serão grandes amigos. Tenho certeza! Veja só o caso de La Bourdonnais e McDonnell: passam quase todo o tempo juntos, jogando e rindo bastante.”
Eram tantos grandes jogadores, tantas novidades, tantas novas ideais que demorou para Josué se dar conta que sua antiga vida estava encerrada. Lembrou-se da esposa, filhos, netos e bisnetos. Ficou subitamente triste, pois morrera longe deles. Como deusa que era, Caíssa leu seus pensamentos.
“Eles jogam xadrez, não é?”
“Sim, jogam. Claro que cada um tem seu nível, mas até os bisnetinhos já movem as peças!”
“Então, não se preocupe. Um dia estarão todos aqui com você!”
Sorriu ao pensar que fizera muito bem em ensinar o jogo a todos da família. Caíssa despediu-se e foi para perto de Bronstein. Josué continuou andando pelo vasto paraíso até encontrar um homem delicado que estava acabando de tornear algumas magníficas peças. Estava terminando um peão. Josué observou aquela cena tentando ficar bem quieto. Quando o homem acabou o trabalho, olhou para o lado e viu Josué.
“Amigo, quer jogar comigo? Acabo de fazer este novo jogo de peças!”
“Será um prazer! Vai ser minha primeira partida aqui!”
Arrumaram as peças num tabuleiro que estava numa mesa próxima, o homem pediu para jogar com as peças brancas. Antes de mover, porém, ergueu um peão e começou o que acabaria por ser uma longa palestra:
“Sabia que os peões são a alma do xadrez?”
(*) Uma primeira versão deste texto apareceu em primeira mão no blog parceiro Reino de Caíssa
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