A máquina finalmente vai matar o xadrez? Ou seremos nós?

Carlsen-Niemann.

Em 1997, quando o computador Deep Blue venceu o campeão mundial de xadrez Gary Kasparov, muitos se perguntaram se o xadrez ia morrer.

A famosa 6ª partida do macth de 1997 Fonte: Veja

A pergunta continua válida nos dias de hoje, mas não pelo motivo que muitos pensaram em 1997.

Desde os anos 2000, os humanos entenderam que a capacidade das máquinas no jogo de xadrez era insuperável. Um sinal disso foi a extinção das competições entre homens e máquinas, coroada pela decepcionante derrota de Kramnik em 2006 (então campeão mundial) contra Deep Fritz.

Kramnik × Deep Fritz 2006 (5ª partida) Fonte: Chessbase

O interesse humano no jogo, porém, não decaiu. Pelo contrário, conforme apontou o Kasparov em um de seus livros, a cooperação entre homens e máquinas ajudou a aprofundar compreensão sobre o jogo, principalmente ao encontrar ideias estratégicas mais profundas e obrigar os jogadores de elite a aposentar aberturas muito especializadas que dominaram o xadrez nas décadas de 1980 e 1990.

Contudo, os smartphones se tornaram poderosos computadores miniaturizados enquanto os algoritmos de xadrez tornaram-se quase perfeitos. Hoje, o jogador comum tem acesso a um super grande mestre no bolso, em seus telefones equipados com as engines mais atualizadas, como o Stockfish.

Para muitos, tornou-se difícil resistir à tentação de utilizar tamanha ajuda em suas partidas, seja amistosas pela internet, ou até mesmo em torneios presenciais (ou OTB de “over the board”)!

Os controles de segurança em torneios OTB, principalmente nos eventos de elite, vinham sendo suficientes para detectar fraudes e desencorajá-las. Mas alguns jogadores ainda tentaram.

O mestre FIDE búlgaro Borislav Ivanov chamou atenção do mundo do xadrez ao passar a apresentar desempenho digno de super grande mestre em diversos eventos. Após ficar famoso e despertar suspeitas, em uma das competições foi pedido que ele retirasse os sapatos. Ivanov não aceitou, alegando questões de higiene pessoal. Nada se provou, mas ele se afastou das competições.

O grande mestre letão Igors Rausis também caiu no doce canto das engines e foi pego consultando um smartphone no banheiro durante uma partida em 2019. Ele foi banido pela federação internacional e perdeu seu título de grande mestre.

A explosão do xadrez online (onde é mais fácil trapacear) e a transferência de muitos torneios que antes eram presenciais para esse formato deu às possíveis trapaças uma nova dimensão, pois agora é possível ganhar premiações em dinheiro além de pontos no ranking online.

Carlsen prestes a abandonar contra Niemann. Fonte: Chessbase

Recentemente, o próprio campeão mundial de xadrez, o norueguês Magnus Carlsen, levantou suspeitas contra um jovem Grande Mestre norte-americano, Hans Niemann, após ser derrotado por ele numa partida presencial. Algumas semanas depois, num torneio online, Carlsen manteve seu protesto ao abandonar uma partida após somente uma jogada.

O assunto ultrapassou a bolha do xadrez e tem sido comentado em diversos meios de comunicação, o que pode ser péssimo para a imagem do jogo.

Se, por séculos, o xadrez tem sido visto como sinônimo de inteligência e pensamento estratégico, a repercussão dessa suposta trapaça arrisca colocá-lo no mesmo nível de meros jogos de azar. Não é a publicidade que o xadrez precisa.

Hans Niemann passando por inspeção de rotina no início do Campeonato Nacional de xadrez dos Estados Unidos (10/2022) Fonte: Chessbase

O problema que esse caso realça é que não se encontrou nada contra Niemann nas buscas rotineiras por aparelhos eletrônicos, o que nos deixa com somente duas possibilidades:

1) Ele não é trapaceiro
2) Ele seria trapaceiro, mas o método que ele usa é impossível de detectar com os meios vigentes

O segundo caso é que preocupa. Pois os avanços tecnológicos aliados à poucos níveis de ética podem criar o cenário ideal para a morte do xadrez: quem vai querer patrocinar eventos onde grandes jogadores não passariam de executores das ideias das máquinas? Como os jovens talentosos se motivariam para compreender as dificuldades do jogo?

Deep Blue não matou o xadrez, nem Deep Fritz, nem Stockfish, nem AlphaZero. Eles são todos inofensivos ao xadrez. São os seres humanos que, se não tomarem cuidado, um dia matarão uma das mais maravilhosas criações da mente humana.

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Autor: Rewbenio Frota

Engenheiro por formação e afinidade, escritor e enxadrista por devoção e teimosia. Alguém que deseja aprender (e ensinar aos meus filhos) como podemos viver bem neste mundo que muda a cada momento!

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